VENEZA — Como Matteo Messina Denaro (1962-2023), um mafioso da Cosa Nostra foragido por mais de 30 anos, conseguiu operar tanto tempo na clandestinidade? Essa foi a pergunta que motivou a dupla de cineastas italianos Fabio Grassadonia e Antonio Piazza a assinarem um filme livremente inspirado na vida de um dos criminosos mais procurados e perigosos do mundo.
O Último Chefão resgata a história de Denaro, um mafioso aliado da família Corleonesi, o clã que serviu de base para a saga iniciada por Francis Ford Coppola com O Poderoso Chefão, de 1972. Após concorrer ao Leão de Ouro na última edição do Festival de Veneza, o drama que também explora as entranhas da máfia siciliana no geral é uma das atrações da 12ª edição da 8½ Festa do Cinema Italiano, inaugurada esta semana em 18 cidades brasileiras.
A trama é ambientada na Sicília, no início dos anos 2000, quando o fugitivo Denaro (Elio Germano), conhecido como “Diabolik” ou “chefe de todos os chefes”, passa a receber cartas de seu padrinho Catello Palumbo (vivido por Toni Servillo). A correspondência, no entanto, era só uma desculpa, já que o padrinho queria mesmo ajudar a polícia a prendê-lo, após ter sido obrigado a cumprir tal função pelos serviços secretos italianos.
E para atrair a atenção do mafioso, Catello, um ex-político corrupto recém-saído da prisão, tenta apelar nas cartas para um suposto vazio existencial de Denaro, que vivia nas sombras. Daí nasce uma caçada entre os dois homens, com o roteiro alternando entre as cenas do cotidiano dos dois protagonistas.
Enquanto Catello tenta retomar as obras de um hotel inacabado, o recluso Denaro passa os dias montando um quebra-cabeça ou trocando mensagens com a organização, daquelas que precisam ser queimadas imediatamente após a leitura.
No caso do mafioso, há ainda algumas lembranças de sua infância, o que ajudam a pintar um retrato do homem que aprendeu a atirar aos 14 anos.
“Nossa pesquisa sobre Denaro foi longa e um tanto complicada, já que por muito tempo ele foi uma figura subestimada”, disse o diretor Fabio Grassadonia, durante encontro com a imprensa em Veneza, do qual o NeoFeed participou. “Ninguém entendia o verdadeiro alcance e a importância desse criminoso. Não havia muitos dados seguros para estruturar o nosso roteiro, apenas algumas sentenças e alguns documentos judiciais.”
O roteiro só começou a ser estruturado quando a dupla de cineastas encontrou a correspondência trocada entre Denaro e um ex-prefeito de Castelvetrano, Antonio Vacacrino, no período de 2004 e 2006. A pedido dos serviços secretos, Vaccarino tentou desvendar nas cartas que recebia do mafioso qualquer vestígio capaz de indicar o seu paradeiro.

Denaro foi preso em janeiro de 2023 em uma clínica em Palermo (Foto: Reprodução X)

Toni Servillo (à esquerda) vive Catello Palumbo, padrinho de Denaro que passou a prestar serviço para o serviço secreto italiano (Foto: Divulgação)

Durante os 30 anos em que esteve foragido, o mafioso adotou vários disfarces e nomes falsos (Foto: Reprodução X)

Os cineastas Antonio Piazza e Fabio Grassadonia (à direita) se basearam na troca de correspondência entre Denaro e Antonio Vacacrino, ex-prefeito de Castelvetrano, entre 2004 e 2006 (Foto: imdb.com)
Mas tudo foi em vão, já que Denaro só foi capturado em janeiro de 2023, enquanto recebia tratamento para câncer de cólon em uma clínica particular em Palermo, com um nome falso. No mesmo ano, em setembro, já no hospital da prisão, Denaro morreu após entrar em coma irreversível, aos 61 anos.
“São cerca de dez cartas muito interessantes. Além das poucas linhas sobre os negócios de Denaro, ele falava longamente sobre si mesmo. E foi assim que surgiu o retrato psicológico de um homem estranho, infantil e narcisista”, contou Grassadonia, referindo-se ao criminoso que dizia ser capaz de encher um cemitério só com as suas vítimas.
Quando foi preso, mafioso acumulava sete condenações à prisão perpétua. A primeira pelos assassinatos de dois promotores que investigavam a máfia, em 1992, Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, mortos em atentados a bomba na Sicília.
Outra sentença saiu por seu papel em uma série de atentados em Roma, Milão e Florença, também na década de 1990.
A mesma condenação veio pelo sequestro e pela morte do pequeno Giuseppe Di Matteo, de 12 anos, filho do mafioso Santino Di Matteo, que colaborou com a Justiça para esclarecer o assassinato de Falcone. Após muita tortura, o menino teve o corpo dissolvido em um barril de ácido.
Antes de encarnar Denaro, o ator Elio Germano procurou se familiarizar com o perfil psicológico do mafioso. “Há sempre um exibicionismo nessa cultura, uma tendência que eles têm de provarem que são superiores aos outros, o que é claramente uma patologia”, disse ele no mesmo encontro, realizado em Veneza.
Durante o evento, a equipe de O Último Chefão lembrou que a captura do criminoso foi comemorada por todos que já trabalhavam na pré-produção do filme, na época. “Obviamente isso nos encheu de alegria por sermos sicilianos, mesmo que a prisão tenha acontecido depois de trinta anos. Mas ok. Antes tarde do que nunca”, brincou Grassadonia.