O presidente Donald Trump deixou claro em seu discurso na ONU que considera a “invasão” dos imigrantes uma ameaça aos EUA. Tanto essa retórica como o conjunto de políticas adotadas até agora no seu segundo mandato sugerem não apenas a disposição de fechar as fronteiras à imigração, mas também de conter ou até mesmo reduzir a população e a influência dos latinos no país. Uma eventual deslatinização dos EUA pode ser a aposta mais transformadora do governo Trump. Mas os riscos são grandes.
Para Trump, os EUA vinham sofrendo uma invasão, principalmente de latino-americanos. “Na nossa fronteira ao sul, conseguimos repelir com sucesso uma invasão colossal”, disse no seu discurso na ONU. De fato, a interceptação de imigrantes na fronteira bateu recorde no governo de Joe Biden (2021-25), com cerca de 10 milhões. A maioria deles foi detida ou expulsa, mas um número desconhecido entrou sem ser interceptado. Desde que Trump assumiu, as interceptações na fronteira despencaram, o que indica que muito menos pessoas tentaram entrar ilegalmente nos EUA. Apenas em dezembro de 2024 (com Biden), houve quase 302 mil interceptações. Em agosto deste ano, foram 9.740.
“Nossa mensagem é muito simples. Se você entrar ilegalmente nos EUA, você vai para a cadeia ou vai voltar para o lugar de onde veio, ou talvez até mais longe, você sabe o que isso significa”, disse Trump.
E, para ele, essa invasão é uma ameaça existencial aos EUA. “Não temos escolha, e outros países não têm escolha, porque outros países estão exatamente na mesma situação com a imigração. Ela está destruindo o seu país e você precisa fazer algo a respeito.” Falando sobre a Europa, Trump disse que um “desastre imigratório absoluto” está “destruindo a sua herança”.
E falando genericamente, mas referindo-se certamente aos EUA, ele disse: “Seus valores [dos fundadores dos países] definiram nossas identidades nacionais. Suas visões forjaram nosso magnífico destino”. E conclui: “Agora, a justa tarefa de proteger as nações que eles construíram pertence a cada um de nós. (…) Protejamos suas fronteiras, garantamos sua segurança, preservemos suas culturas, tesouros e tradições”.
Essas palavras ecoam o famoso ensaio que o cientista político americano Samuel Huntignton publicou em 2004, na revista “Foreign Policy, intitulado “O Desafio Hispânico”, no qual alertava para os riscos que os EUA corriam com o crescimento da população hispânica (ou latina).
Para Huntington, a imigração latino-americana, sobretudo mexicana, é diferente de outras ondas migratórias nos EUA, pois ela forma uma comunidade grande, contígua e persistente, com forte apego cultural à língua espanhola e aos valores de origem. Isso dificultaria a assimilação ao núcleo anglo-protestante, que seria a base da cultura dos EUA. Huntington via o risco de uma divisão cultural entre uma sociedade anglófona e outra hispânica, que seria uma “grande ameaça potencial à integridade cultural e política” dos EUA. Contra isso, ele acena com uma interrupção abrupta da imigração mexicana. Ele já previa que o nacionalismo branco se tornaria uma grande força política nos EUA, e que o “estímulo mais poderoso para esse nativismo branco serão as ameaças culturais e linguísticas que os brancos veem no poder crescente dos hispânicos na sociedade dos EUA”.
Muitas das teses de Huntington nesse texto foram refutados por outros cientistas políticos. Abraham Lowenthal, por exemplo, observou que o padrão de inserção linguística no inglês das segunda e terceira gerações de hispano-descendentes é parecido com o de outros povos imigrantes nos EUA.
Mas as ideias de Huntington tiveram uma penetração profunda e duradoura em parte da direita americana. E Trump parece decidido a enfrentar esse “desafio hispânico”.
Desde sua posse, o presidente vem adotando uma série de medidas para reduzir drasticamente a imigração, tanto legal como ilegal. Ele declarou emergência na fronteira sul, o que lhe permitiu usar recursos militares e avançar na construção de muros; facilitou as deportações sem audiência judicial e para terceiros países e iniciou um programa de detenção e deportação em larga escala (prometeu deportar um milhão de imigrantes ilegais por ano, de uma população estimada em cerca de 14 milhões nos EUA, segundo o Pew Research Center). O presidente suspendeu ainda programas de refúgio ou asilo humanitários (que beneficiavam cubanos e venezuelanos), reforçou o ICE (Serviço de Imigração e Alfândega), ampliou centros de detenção provisória, fechou estruturas que facilitavam pedidos de legalização e de imigração legal e dificultou a concessão de vistos de entrada, inclusive com base em ideologia.
Mas não se trata apenas de barrar a entrada de novos imigrantes e deportar milhões dos que vivem nos EUA. O governo busca também dificultar a vida de imigrantes, legais e ilegais, no país. Para isso, proibiu o uso de verbas federais em qualquer tipo de apoio aos ilegais, permitiu detenções em locais sensíveis (como igrejas, escolas e tribunais) e ordenou o registro biométrico de todos os não-cidadãos. Quer ainda encerrar a concessão automática da cidadania americana a filhos de imigrantes ilegais ou temporários nascidos nos EUA (essa medida foi barrada pela Justiça e deve ser julgada pela Suprema Corte). O governo vem também ameaçando deportar estrangeiros que vivem legalmente nos EUA.
A lei Big, Beautiful Act, aprovada em julho pelo Congresso americano, deve impactar fortemente a população latina. Ela introduz um imposto de 1% sobre remessas em dinheiro ao exterior, a partir de 1º de janeiro de 2026. A alíquota em si é baixa, mas é possível que as empresas cobrem mais pelas operações, para cobrir custos extras. Além disso, a lei aumenta a exigência de identificação do remetente e de origem dos recursos, o que pode assustar imigrantes, legais e ilegais. A lei também limita o acesso de não-cidadãos (especialmente os imigrantes ilegais, mas não apenas) a programas federais de assistência social, como os de saúde.
Algumas medidas buscam reduzir a influência da comunidade latina nos EUA. Trump, por exemplo, declarou o inglês como a única língua oficial dos EUA. O alcance disso não está claro, mas parece ser uma tentativa de reduzir o bilinguismo. Agências governamentais, por exemplo, poderão recusar prestação de serviços e informações em espanhol. E várias atividades que envolvem questões de segurança, como transporte, talvez tenham de ser feitas apenas em inglês.
Toda essa ofensiva, além de dificultar a entrada de novos imigrantes nos EUA, já está levando imigrantes, tanto legais como ilegais, a optar por deixar o país. Em janeiro deste ano, 53,9 milhões de estrangeiros viviam legalmente nos EUA, segundo o Censo. Em junho, eram 51,9 milhões.
A redução da imigração legal pode dar uma sobrevida à maioria branca na população dos EUA. O Censo americano prevê que os brancos (excluindo latinos) deixarão de ser maioria na população do país em 2044. Mas uma análise do jornal “The Washington Post” indicou que a redução da imigração pretendida por Trump pode atrasar isso em ao menos cinco anos. O grupo que mais cresce é justamente o dos latinos.
Obviamente, a deslatinização dos EUA não é publicamente reconhecida como um objetivo, mas, se ela for percebida pela população latina, pode trazer riscos para o presidente e o seu Partido Republicano. Nas eleições de 2024, Trump obteve 48% do voto latino, muito acima dos 36% de 2020. Se esse eleitorado se sentir perseguido pelas políticas do governo, pode se voltar contra Trump e os republicanos. Há sinais de que isso pode estar acontecendo. Uma pesquisa deste mês com eleitores latinos nos EUA, encomenda pela organização Somos Votantes, indicou que 39% têm uma imagem positiva de Trump (eram 43% em fevereiro) e 59%, negativa (eram 55%).
Além disso, a ofensiva contra os latinos ameaça prejudicar a economia americana. Vários setores, que dependem de mão de obra imigrante (como agricultura, hotelaria e estaurantes), já relatam falta de trabalhadores e a necessidade de elevar salários para atrair pessoal. Além disso, pesquisas indicam uma queda no consumo entre os latinos, devido ao temor quanto à sua situação no país.