Search
Close this search box.
Search
Close this search box.

Do Oráculo de Bolso e Outros Demônios

Eu sou do tempo, meus caros, em que telefone servia para duas coisas: falar e, com muito esforço, mandar uma mensagem torta para quem a gente não fazia a menor questão de ouvir a voz. Era um tijolo. Um trambolho. Mas era um trambolho honesto: fazia mal e porcamente o que prometia e depois ia dormir na gaveta.
Acontece que a humanidade tem uma vocação danada para se complicar. E inventaram o bicho-papão da nossa privacidade, o dito cujo smartphone. Um retângulo liso, sedutor, que pisca pra gente e promete o mundo. E nós, claro, abrimos a porta de casa e mandamos entrar. Demos a ele a chave do carro, o segredo do cofre, a guarda dos filhos e, de quebra, a senha do Wi-Fi.
O danado hoje é tudo. É nosso guru, nosso despertador, nossa bússola moral, nosso álbum de fotos embaraçosas, nossa agência bancária e, suspeito, o espião mais bem pago que já tivemos o prazer de financiar. É uma maravilha. Uma dessas maravilhas que fazem a gente desconfiar que, em algum lugar, um sujeito com chifres e rabo pontudo está rindo da nossa cara.
Pois bem, o diabo da história não está nos detalhes; está na centralização. Ao colocar a vida inteira nesse altarzinho portátil, criamos um pote de ouro no fim do arco-íris para uma turma que andava meio sem rumo: o ladrão. E o ladrão de hoje, convenhamos, é um profissional com diploma. Tem MBA em TI e uma pós-graduação em malandragem. Não é um batedor de carteira; é um headhunter de patrimônio alheio.
Quando um desses cabras sabidos lhe surrupia o aparelho, ele não está levando só um telefone. Está levando você. E ele, o Mago do PIX alheio, vai fazer em quinze minutos o que você levaria quinze dias para organizar: um inventário completo e, em seguida, a liquidação total dos seus bens.
E aí, meu nobre, despojado e humilhado, você começa a sua romaria. Pega seu Boletim de Ocorrência, aquele pedacinho de papel timbrado com a assinatura de uma autoridade igualmente impotente, e vai bater na porta do banco. Com a voz trêmula de quem ainda acredita em contos de fada, você narra sua odisseia. O gerente, com a serenidade budista de quem já ouviu aquela ladainha mil vezes, ouve tudo, balança a cabeça em sinal de profunda empatia e dispara a frase que deveria estar emoldurada na entrada de toda agência: “Puxa, que chato. Mas olhe aqui… a transferência foi feita com a sua senha, meu nobre.”
É uma lógica de fazer inveja a Aristóteles. É irrefutável. A senha, minha gente, é a nova alma. E se a sua alma validou a transação, quem é o banco para duvidar? Pouco importa se, no momento da epifania bancária, sua alma estava sendo convencida sob a mira de um objeto metálico. O sistema não prevê essas nuances.
Mas, e aqui reside a beleza da coisa, quando você pensa que tudo está perdido, o capitalismo lhe estende a mão. O mesmo sistema que lhe deu as costas agora lhe oferece, com um sorriso de orelha a orelha, um produto inovador: o seguro para roubo de smartphone! Um pedacinho de paraíso financeiro para protegê-lo do inferno que eles não se deram ao trabalho de trancar. É a chicana elevada à categoria de produto financeiro. Não é de uma elegância que chega a dar câimbra no maxilar?
No fim, a gente ri, claro. Aqui no Ceará, rir de uma desgraça bem contada é quase uma forma de legítima defesa. Mas a pergunta fica, insistente como um parente pedindo dinheiro emprestado: nessa ópera-bufa, nós somos a vítima ou apenas o palhaço que paga o ingresso e ainda aplaude no final?
Pensem nisso. Mas não por muito tempo. O boleto do seguro já deve estar chegando.

O post Do Oráculo de Bolso e Outros Demônios apareceu primeiro em O Estado CE.



Estado do Ceará

Relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *