
Confesso, meus prezados leitores, que sou um cearense com o orgulho provinciano de quem estudou num colégio que, infelizmente, a modernidade levou: o saudoso Colégio General Osório. Bons tempos. Tempos em que a educação era um ofício e não um produto. Sou, afinal, de uma era em que lingüiça se escrevia com trema, e tal qual dois olhinhos curiosos, o trema espiava o mundo, atestando uma pronúncia que hoje parece ter sido abolida por decreto.
Naquela época, a mochila era um teste de resistência para a coluna vertebral, não pela quantidade de bugigangas, mas pelo peso específico do saber. Ali dentro, morava ele, o totem: a “Novíssima Gramática” de Domingos Paschoal Cegalla. Aquilo não era um livro; era um artefacto de pura sabedoria, um monumento à sintaxe que pesava na mochila e, hoje vejo, na consciência.
Ao seu lado, qual escudeiro fiel, o Aurélio. Juntos, foram meus passaportes. Com eles, desbravei Portugal a trabalho sem jamais cometer o vexame de um plebeu linguístico. De lá, trouxe na mala umas manias, como este teimoso facto que me salta aos dedos, ou um apreço pelo rigor de um abstracto, cacoetes transatlânticos que me perdoarão. É o que resta de um tempo em que as palavras tinham certidão de nascimento e morada fixa.
Mas os tempos, ah, os tempos… Parecem ter sofrido um AVC gramatical. Algum comitê de notáveis, numa tarde de tédio absoluto, deve ter decidido que a lógica era um luxo desnecessário. E então, vindo do éter das novas certezas, soou a palavra. O petardo. O estrupício sonoro: Primeiramente!
A primeira vez que a ouvi em boca letrada, senti uma fisgada no nervo óptico. Meus amigos, que já conhecem a minha fisionomia de purista contrariado, apenas desviaram o olhar. Pois, em meu íntimo, a voz cavernosa de Cegalla gritava: “E depois? Segundamente? Terceiramente? Vamos criar uma procissão de advérbios até o ‘infinitamente’?”
A beleza da nossa língua reside na sua elegância funcional. “Primeiro”, “em primeiro lugar”. É limpo, é direto. “Primeiramente” é um smoking com lantejoulas. E a praga se alastra, meus caros. É um sintoma. A mesma doença que gera o “primeiramente” é a que nos brinda com pérolas de um surrealismo involuntário, dignas de um manifesto dadaísta.
A “surpresa inesperada”, por exemplo. O que seria uma surpresa esperada? Um boleto no fim do mês? A segunda-feira após o domingo?
A “goteira no teto”. Agradeço a especificação. Por um momento, temi que a goteira pudesse estar brotando do assoalho, num desafio às leis da gravidade. Ainda aguardo o dia em que presenciarei uma goteira no rodapé; seria um fenómeno digno de estudo parapsicológico. Na parede, sabemos, a água escorre. No chão, vira poça. A goteira, coitada, só tem uma vocação na vida: o teto.
E o que dizer do sublime “encarar de frente”? O sujeito que o profere deve imaginar alternativas fascinantes. O “encarar de lado”, talvez, numa abordagem oblíqua e cheia de charme. Ou o “encarar de costas”, que, convenhamos, seria outra modalidade de encontro, quiçá mais íntima, porém menos visual.
E quando penso que já vi de tudo, surge a nova fronteira da perplexidade. O bom e velho “todos”. Desde que me entendo por gente, e por aluno do General Osório, “todos” era o pronome universal. Mas não. Inventaram o “todas” para acompanhar e, agora, a pirueta final: o “todes”. Com todo respeito às sensibilidades, a minha sensibilidade gramatical entra em colapso. Porque para mim, “todos” sempre foi a resposta final daquela brincadeira de adivinhação: abrange o animal, o vegetal e o mineral. Inclui o leitor, a leitora, a samambaia na varanda, a dignidade perdida, o sujeito de gravata, a senhora de chapéu, a criança, o cacto na janela, o gato que dormia ao sol e o cometa Halley. A gramática, em sua sabedoria milenar, já havia resolvido a questão: o masculino plural como forma neutra, universal. Ou seja, a língua já era inclusiva antes de isso virar pauta.
Assim, neste mundo de excessos verbais, de “subir pra cima” e “descer pra baixo”, eu me recolho ao meu canto. Sou um arqueólogo de tremas perdidos, um guardião de acentos esquecidos. É facto: derrapamos na curva da clareza. E a cada “primeiramente” que ecoa, sinto Cegalla e Aurélio se remexendo no túmulo. Não de raiva. Mas de pura pena.
Enquanto isso, aguardo, com a paciência de um monge e a ironia de quem já viu de tudo, o inevitável advento do “ultimamente” para encerrar a lista. Ah, não, esperem. Esse já existe. O que prova que, no fim das contas, a língua é mais esperta que seus falantes. Ou talvez, apenas mais paciente.
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