Há até algum tempo a classe trabalhadora se dividia entre os que tinham registro em carteira e os autônomos. “Carteira assinada”, como se dizia, era símbolo de status. Nos últimos anos, porém, surgiu a onda do empreendedor. O termo sugere liberdade e chance de ascensão financeira mais rápida. Mas ao mesmo tempo provoca contradições e alguma confusão.
Pesquisa encomendada pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) mostra que, embora 53,4% dos entrevistados acreditem que os brasileiros, em geral, preferem ser empreendedores, 56% dos que hoje são autônomos do setor privado e já tiveram experiência com o regime CLT afirmam que com certeza voltariam a ter a carteira assinada.
A pesquisa, feita de forma presencial, envolveu 3,85 mil pessoas da População Economicamente Ativa e não Ativa e trabalhadores de plataformas digitais nas cinco regiões do país. Foi realizada pela Vox Populi com a participação do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese).
Trata-se de um trabalho amplo. A percepção sobre ter emprego com carteira assinada ou partir para o “negócio por conta própria” é só um dos aspectos abordados. Segundo Marta Maia, responsável técnica pelas pesquisas da Vox Populi, o trabalho permitirá a criação de um banco de dados que pode ser segmentado, “contribuindo para o debate qualificado”.
O que mais chamou atenção da direção da CUT e do Dieese é a percepção de que baixa remuneração, exigências de qualificação e jornadas extensas são, segundo os entrevistados da População Economicamente Ativa, os principais fatores que os afastam do trabalho formal. Salários baixos foram apontados por 44,5% e exigências excessivas por 38,7%.
“Temos visto montadoras que oferecem dois salários mínimos, mas exigem qualificação e comprovação de pelo menos dois anos de experiência. Assim como motoristas especializados em ônibus urbanos biarticulados ganhando isso também”, afirma Sérgio Nobre, presidente nacional da CUT. “Diante dessas condições, muita gente desiste de emprego para se tornar motorista de aplicativo”, completa.
Segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, a informalidade abrange 37,8% dos brasileiros que estão no mercado de trabalho.
“O que tem levado à informalidade é a precarização do trabalho formal”, destaca Nobre. “É a percepção de que como assalariado a pessoa não vai conseguir pagar as contas”, completa Adriana Marcolino, diretora técnica do Dieese.
Para o professor Nelson Marconi, pesquisador no tema na Fundação Getúlio Vargas, muitos passaram a ver a carteira assinada como “algo indesejável”. Para ele, a onda da chamada “pejotização” (pessoas jurídicas individuais) entre trabalhadores com menor nível de escolaridade precisa ser controlada, pois esses são os que mais demandam direitos sociais.
“Muitas vezes é uma ilusão imaginar que esse tipo de serviço vai garantir maior renda. Ganha-se mais porque trabalha-se mais. Mas a remuneração da hora trabalhada é menor”, completa Marconi.
Os sindicalistas chamam esse movimento de “empreendedorismo de necessidade”. Para Nobre, a onda se espalhou nas redes sociais. A ponto, diz, de “influenciar até a área acadêmica e também a Justiça”. A CUT tem discutido a questão com o governo federal e os juízes do Supremo Tribunal Federal.
Embora a pesquisa revele que para os entrevistados empreendedorismo é desejo nacional, há uma contradição entre essa percepção e anseios pessoais. Na pergunta “que tipo de atividade profissional gostaria de ter”, duas respostas opostas (e espontâneas) empataram.
“Ter um bom emprego com carteira assinada” foi apontado como o objetivo de 17,8% dos entrevistados, enquanto 17,6% disseram que preferem o trabalho como autônomo. Passar em um concurso público é o desejo da minoria dos entrevistados (7,6%), embora a estabilidade que esse tipo de trabalho oferece tenha sido apontada como o maior atrativo, indicado por 48% dos que preferem seguir esse caminho.
A pesquisa revela outras contradições curiosas. Total de 40,9% dos que estão em regime CLT responderam que “com certeza” gostariam de ser empreendedores. Ao mesmo tempo, à questão dos que atuam como autônomos no setor privado e gostariam de voltar ao regime CLT, além dos 56% que declararam que “com certeza” retornariam a esse modelo, outros 30,9% também disseram que “poderiam” voltar.
A proliferação do uso do termo empreendedor também confunde muita gente. Parte dos entrevistados que trabalham em profissões como ambulantes, pedreiros, cabelereiros, técnicos em TI e manicures se declarou autônomo na pesquisa e outra parte, empreendedor. “Em cada seis autônomos um se identifica como empreendedor”, destaca Marcolino.
A pesquisa da Vox Populi aponta, porém, com clareza, os principais motivos que levam um profissional a ser autônomo. O primeiro é a flexibilidade de horário, destacada por 35% dos que preferem trabalhar por conta própria. “Ser seu próprio patrão” aparece em segundo, com 25%, seguido por “fazer o que realmente gosta” (18%), e “ser empreendedor, construindo algo e deixando um legado” (15%).
“Há um crescimento evidente dos que trabalham por conta própria entre os menos escolarizados, o que reforça a necessidade de discussão para evitar uma futura obsolescência da CLT, que traz em seu bojo uma ampla rede de proteção social”, afirma Marconi.
O professor também sugere a restrição das atividades que podem ser enquadradas no regime tributário dos MEIs (microempreendedores individuais) para evitar fraudes e também o risco de que a contratação de determinados profissionais seja pelo regime menos oneroso. “É preciso estabelecer qual é o limite disso”, afirma.
Marconi lembra, ainda, a grande quantidade dos trabalhadores informais que não vão se aposentar, o que tende a provocar rombos cada vez maiores no sistema previdenciário.
Segundo Nobre, algumas das novas profissões já começaram a se organizar em associações e cooperativas. Em Pernambuco, foi criado o Sindicato dos Trabalhadores Entregadores, Empregados e Autônomos de Moto e Bicicleta por Aplicativo (Seambape). Também em Salvador foi criado um sindicato dos motoristas por aplicativos, o Sindmab.
Embora seja um natural defensor do trabalho formal e do registro em carteira de trabalho, Nobre reconhece a existência de uma nova realidade no mercado de trabalho. O dirigente admite que o movimento sindical precisa se reorganizar.