Search
Close this search box.
Search
Close this search box.

A Agonia de Estar Esperando

Meus caros, mal se assentou a poeira de nossa batalha contra os vícios de linguagem, e eis que me sinto obrigado a continuar. Já que estamos neste vale de lágrimas gramaticais, vamos “descer o cacete”, com a devida elegância, num monstro talvez mais sorrateiro: o gerundismo. Ele não vive nos discursos empolados, mas na mais mundana das torturas modernas: o atendimento telefônico. Foi ali que o encontrei em sua forma mais pura. Após explicar meu problema pela terceira vez, ouvi a sentença:
“Um momento, senhor, que eu vou estar transferindo a sua ligação.”
Nesse instante, algo se rompe na minha biologia. Meu rosto, à revelia de qualquer polidez, insiste em executar uma coreografia de contrações musculares involuntárias. Meu fígado, coitado, declara guerra ao pâncreas numa luta corporal silenciosa e brutal, uma agonia que só os puristas da língua conhecem. A vontade que me assalta é a de gritar ao telefone: “Meu caro filhote de Equus Africanus Asinus, vá ler um dicionário! Vá estudar uma gramática!”. Mas a etiqueta, e o que me resta de saúde mental, me obrigam a um sorriso amarelo e a um “pois não, aguardo”.
É uma perversidade linguística que, confesso, me ofende mais que os pecadilhos veniais que grassam por aí. Eu até perdoo, com um suspiro de enfado, o “gritar alto” (ainda espero o dia de testemunhar um sussurro gritado); a “multidão de pessoas” (porque, evidentemente, uma multidão de coalas seria uma ocorrência mais comum); e até mesmo o sublime “amanhecer de manhã” (avisem-me quando amanhecer à tarde, farei questão de assistir). Esses são tropeços, quase ingênuos.
O gerundismo é diferente. É um crime premeditado. Ele se veste de uma falsa formalidade, importada de um manual de telemarketing de algum país sem alma. “Vou estar verificando.” “Vamos estar enviando.” É a gramática da enrolação, o idioma oficial do talvez. São frases que não afirmam nada, apenas nos deixam à deriva num mar de possibilidades que talvez venham a estar acontecendo.
Fico aqui a imaginar esta praga aplicada a momentos cruciais da vida. Já pensou um médico dizendo ao pai aflito: “Sua esposa vai estar dando à luz”? Ou um noivo, no altar, em vez do sonoro “sim”, murmurar: “Vou estar aceitando”? A vida, meus amigos, exige o verbo no tempo certo.
Assim, neste mundo de excessos verbais, de “entrar pra dentro” e “sair pra fora”, eu me recolho ao meu canto. É facto: derrapamos na curva da clareza. E a cada gerúndio mal empregado, sinto Cegalla e Aurélio em seus túmulos. Eles não estão apenas a se revirar, como se diria num português mais castiço. Não, o castigo é mais poético, mais terrivelmente adequado ao crime. Com certeza, eles devem estar se revirando, num tormento gramatical contínuo, perpétuo e, claro, interminavelmente gerundial.



Estado do Ceará

Relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *