
A agulha desceu com a delicadeza de uma pluma sobre o vinil. E o apartamento se encheu de Chopin. Um Noturno, para ser preciso, daqueles que prometem uma melancolia elegante, uma tristeza de salão. Mas Pindorama, essa nossa pátria amada e desafinada, tem um talento singular para arranhar discos. A realidade lá fora não pede licença; arromba a porta e bota o pé na mesa de centro.
A melodia da semana, como sabem, não veio da Polônia. Veio do Rio de Janeiro, uma sinfonia de estampidos que resultou em 121 corpos silenciados. A nota oficial do governo do estado celebrava uma ação de sucesso. A oposição, em seu papel protocolar, bradava “massacre”. Até aí, tudo dentro do roteiro previsível, da encenação a que já nos habituamos.
O ato que fez o pano rasgar, no entanto, veio depois, na forma de números, e deixou boquiaberta a sociedade que assistia de longe. Até em Brasília, dizem as paredes, houve um silêncio constrangido. A estatística, essa senhora despudorada que não respeita narrativas, subiu ao palco: 64% dos fluminenses, segundo a Genial/Quaest, aprovaram a coisa toda. Pior: 87% dos moradores das favelas, os que vivem na boca do palco, aplaudiram de pé, segundo a Atlas/Intel.
E então, o silêncio. Como assim? O público-alvo da tragédia gostou do final? A plateia que leva o tiro perdido no peito está ovacionando o espetáculo? A surpresa não foi dos que vivem lá, meus caros. Foi nossa. Nossa, que assistimos a tudo da segurança de nossas poltronas, convencidos de que sabíamos o que eles deveriam sentir.
A resposta para esse enigma não está nos tratados de ciência política, mas no preço do gás de cozinha. Não o preço da etiqueta, mas o preço real, acrescido do “pedágio” que o poder paralelo impõe para que o cidadão tenha o direito de ferver sua água. É a taxa sobre o ato de existir. Reclamar? Ah, a reclamação é um ato de insubordinação punido com uma criatividade pavorosa, que a crônica policial chama de “micro-ondas”. Entende-se agora o aplauso? Não é à morte. É ao silêncio, ainda que temporário, do cano do revólver que lhes arranhava a nuca.
É aqui, meus caros, que esbarramos no que os mais lidos chamam de “fadiga de panorama”. Sabe quando se retira um piano de cauda que passou décadas na mesma sala e os moradores demoram a notar sua ausência? Nós fizemos o oposto. Deixamos que a violência entrasse, colocamos um banquinho para ela, servimos café e, com o tempo, ela virou parte da mobília. Já não a enxergamos. É apenas a poltrona manchada no canto da sala.
Permitam-me um aparte de minha aldeia. Fortaleza, final dos anos 70, quase 80. Na Avenida Santos Dumont, duas torres foram erguidas com uma audácia hoje impensável: Bagatelli e Demoiselle. Não tinham muros. Repito, para os que não creram: NÃO-TINHAM-MUROS. Era um tempo de uma inocência quase estúpida. Pois quem seria o insensato a cometer o sacrilégio de transpor a fronteira invisível entre a calçada pública e os jardins privados? Tal atitude não era uma travessura, era o impensável. Era pedir para que chamassem a polícia, que viria. E se, por um azar cósmico do transgressor, o C.O.E. estivesse por perto e aparecesse, o vivente não apenas seria preso; ele repensaria todas as suas escolhas de vida, a começar pelo dia em que nasceu. O medo, então, tinha endereço e uniforme.
E hoje? A violência, que antes pedia licença, tornou-se a dona da casa. O Bagatelli e o Demoiselle, como velhas damas assustadas, primeiro ergueram um muro baixo, um véu de timidez. Depois, um muro alto, um capuz. Hoje, a entrada parece um presídio de segurança máxima de filme americano, e o conjunto foi coroado com uma grinalda de nosso tempo: uma cerca elétrica sobreposta por outra, cortante, do tipo concertina. Só faltam o fosso e os crocodilos, talvez por questões de orçamento. Uma joia da nossa resignação.
E nós, não os moradores de lá, mas nós, a sociedade que assistiu a essa transformação de camarote, nos tornamos peritos em erguer nossas próprias fortalezas. Não protestamos a plenos pulmões pela liberdade perdida. Ao contrário, pagamos mais caro pelo apartamento com guarita blindada, celebramos a altura do muro, instalamos aplicativos de pânico no celular e chamamos essa rendição de “segurança”. Transformamos nossas casas em bunkers e nossas cidades em arquipélagos de ilhas fortificadas, conectadas por carros blindados.
O Noturno de Chopin já acabou. O único som agora é o estalo elétrico da cerca do vizinho, a nova canção de ninar de Pindorama. E a pergunta que o título original deste triste relato me fez, e para a qual ainda não tenho resposta, continua a ecoar, cada vez mais cínica.
Até quando?