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A Conta de Luz (e a falta dela)

Meus caros leitores,
Há semanas em que o ofício de cronista em Pindorama se assemelha ao de um arqueólogo do absurdo. A gente mal acaba de catalogar uma pérola do besteirol nacional e já tropeça em outra, ainda mais lustrosa. E a gema da vez, reluzindo nos noticiários, tem a ver com uma ideia luminosa: taxar o sol.
A cena é de uma singeleza comovente. O cidadão comum, este herói anônimo que sobrevive às intempéries da economia e da lógica, decide, num arroubo de otimismo e consciência ecológica, fazer a sua parte. Raspa as economias, sobe no telhado e instala painéis fotovoltaicos. Sonha com uma conta de luz menos dolorosa e, de quebra, em ajudar o planeta, devolvendo o excedente de energia para a rede. Um gesto de fé no futuro, quase uma teimosia.
Eis que entram em cena as distribuidoras de energia, essas augustas matronas de um modelo de negócio com a data de validade mais vencida que iogurte no fundo da geladeira. Vendo o futuro bater à porta com a insistência de um oficial de justiça – um futuro de geração própria, de redes inteligentes e descentralizadas –, elas resolveram fazer o que dinossauros fazem diante do meteoro: um lobby furioso para que o céu não caia sobre suas cabeças.
E para onde levaram suas mágoas? Ora, para o lugar mais sensível da República: o Congresso Nacional, aquele oásis de empatia onde a necessidade do povo e a lógica do bom senso costumam tirar férias prolongadas. Ali, conceberam mais uma daquelas Medidas Provisórias que, de provisório, só têm o nosso alívio.
A obra de arte atende pelo código MP 1304. A proposta é de uma simplicidade franciscana: aplicar um pedágio sobre a luz do sol. Uma “taxazinha” de R$ 20,00 por cada 100 kWh gerados por quem ousou ter uma pequena usina no telhado de casa ou do seu comércio. A justificativa oficial, essa obra-prima do cinismo, é que o Zé da esquina, com suas plaquinhas, precisa “dividir os custos” bilionários das grandes usinas. É o poste mijando no cachorro, para usar uma imagem veterinária. Em alguns estados, esse “carinho” representa um acréscimo cinco vezes maior que a temida bandeira vermelha.
Ah, agora a luz se fez em minha mente! A estratégia, então, é desestimular o cidadão que gera energia limpa para proteger o modelo antigo. Claro, faz todo o sentido! O Brasil, com este sol inclemente que nos castiga e abençoa, deve mesmo desencorajar o seu uso. Afinal, por que aproveitar um recurso infinito e gratuito se podemos continuar queimando carvão em termelétricas, com sua fumaça tão pitoresca?
E eu, na minha ingenuidade, que achava que diversificar a matriz energética era importante. Que tolo! Nossas hidrelétricas, obviamente, dão conta de tudo com um pé nas costas, nunca tivemos uma crise hídrica, não é mesmo? E os serviços das distribuidoras são de uma eficiência suíça, um balé de perfeição que jamais nos deixa na mão, literalmente no escuro.
Devo estar com algum problema. Ou minhas lentes multifocais estão distorcendo as notícias, ou, como se diz aqui no meu Ceará, ando meio “abirobado”. Preciso marcar um oftalmologista com urgência, talvez um terapeuta que me ajude a compreender as sutilezas do progresso ao contrário.
Enquanto aguardo as cenas dos próximos capítulos dessa novela, tomarei uma providência prática, inspirada na sabedoria dos nossos legisladores. Vou ali comprar um pacote de velas e um par de lampiões.
Em Pindorama, o futuro é brilhante, mas é sempre bom se precaver contra a escuridão.



Estado do Ceará

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