Os outrora discretos family offices estão no centro do palco da gestão patrimonial global. Eles estão sendo impulsionados por uma nova leva de herdeiros e empreendedores que redefinem a continuidade dos negócios familiares ao optarem por estratégias que envolvem, inclusive, a venda de empresas consolidadas.
Essa transformação tem levado estruturas antes reservadas a um papel de protagonismo. O número de single family offices – instituições que atendem exclusivamente uma única família – saltou de cerca de 6 mil em 2019 para aproximadamente 8 mil atualmente, representando um acréscimo superior a 30% nesse período, de acordo com a Deloitte. As previsões indicam que esse número ultrapasse 10 mil até 2030.
Essa redefinição do mapa da gestão patrimonial global é uma tendência impulsionada tanto por uma vasta geração de liquidez oriunda de novos empreendedores como por uma onda de venda de empresas familiares.
O relatório Rethink Family Wealth, publicado pelo banco suíço Lombard Odier, que o NeoFeed teve acesso em primeira mão, mostra que esse cenário reflete uma convergência de oportunidades e desafios na transmissão e reestruturação dos patrimônios.
Christine von Pezold, consultora independente de family governance na Lombard Odier, destaca que muitas empresas familiares – especialmente pequenas e médias companhias (PMEs) – enfrentam intensa concorrência e dificuldades para se manterem competitivas, o que tem estimulado fusões e aquisições. Essa dinâmica contribui para a ampliação dos family offices, à medida que as famílias deixam de ter negócios familiares para terem escritórios de investimentos familiares.
Paralelamente, as novas gerações de herdeiros demonstram menor interesse em continuar tocando negócios familiares, favorecendo a venda de ativos e liberando capital para novas iniciativas. Esse movimento gera um ciclo virtuoso, que fomenta a expansão e a institucionalização dos family offices.
A geografia desse crescimento também se expande. Enquanto centros financeiros tradicionais como Suíça, Londres, Estados Unidos e Hong Kong continuam relevantes, novos polos vêm ganhando destaque. Entre eles estão Singapura, Dubai e a Arábia Saudita, que se apresentam como destinos atrativos.
De forma crescente aparecem jurisdições emergentes, como as Ilhas Maurício. E no contexto europeu, países como Itália, Portugal e Grécia se destacam ao oferecer incentivos fiscais agressivos, embora com uma análise cautelosa quanto à estabilidade política.
Peter Vogel, professor de family business entrepreneurship do IMD Business School, ressalta que “a atratividade vai além da regulação. Fatores como segurança, cultura, conectividade e talentos também pesam” na escolha desses destinos para investimentos patrimoniais.
Entretanto, a intensificação do ambiente regulatório impõe novos desafios aos family offices. Com normas globais cada vez mais rigorosas, essas estruturas precisam adotar padrões mais elevados de transparência, controles robustos e estratégias de mitigação de riscos – especialmente os cibernéticos. Segundo o Lombard Odier, a tendência é que a supervisão se intensifique nos próximos anos, com foco na proteção do investidor e na prevenção de condutas irregulares.
Somado a isso, o setor enfrenta uma verdadeira “guerra por talentos”. A crescente complexidade das carteiras e a sofisticação dos objetivos exigem profissionais que combinem excelência técnica com inteligência emocional, habilidades diplomáticas e a capacidade de lidar com clientes exclusivos.
Em decorrência dessa escassez, os family offices têm reformulado suas políticas de remuneração, oferecendo pacotes mais competitivos e incentivos de longo prazo – apesar de muitas famílias ainda estarem em processo de implantação de uma gestão mais profissionalizada de talentos.
A transformação digital é outro pilar dessa evolução. Muitos family offices que ainda dependem de ferramentas básicas, como planilhas Excel, estão em fase de modernizar seus processos de alocação de ativos, governança e monitoramento de riscos por meio do uso de tecnologias avançadas e inteligência artificial. Essa inovação promete acelerar a eficiência e a precisão na gestão patrimonial na próxima década.
Os especialistas do Lombard Odier apontam que, por trás do crescimento numérico dos family offices, há uma mudança profunda de mentalidade: o capital familiar deixa de ser visto somente como um ativo financeiro, transformando-se em um ecossistema multidimensional – que engloba capital humano, intelectual, emocional e reputacional.
Nesse novo paradigma, o sucesso sustentável depende de uma governança sólida, da educação das próximas gerações e de uma estratégia de propriedade bem definida, fundamentada em valores compartilhados.
“Family offices estão deixando de ser estruturas meramente administrativas para se transformarem em organizações estratégicas, que sustentam o legado e promovem a coesão familiar ao longo das gerações”, mostra o relatório.
Como os family offices estão investindo
O relatório Rethink Family Wealth mapeou os principais objetivos e estratégias de investimento dessas estruturas. A conclusão central é um grande apetite por ativos alternativos, com, em média, 45% dos portfólios aplicados em investimentos como private equity, hedge funds, imóveis e outros ativos ilíquidos.
Esse percentual supera o observado em fundos de pensão e se equipara, de certa forma, aos endowments universitários dos Estados Unidos, refletindo uma visão de longo prazo e uma personalização dos investimentos.
“À medida que amadurecem, os family offices tendem a se comportar como investidores institucionais sofisticados, mas com a liberdade de adotar convicções personalizadas”, afirma Michael Strobaek, CIO global da Lombard Odier.
Essa postura se reflete também na alocação em caixa, que atinge cerca de 9% dos portfólios – percentual superior aos 3% a 4% observados em fundos de pensão ou fundações – funcionando como um colchão financeiro para aproveitar oportunidades ou responder a demandas inesperadas.
As alocações em ações líquidas giram entre 30% e 40%, mantendo equilíbrio com práticas tradicionais, enquanto os títulos de renda fixa e demais ativos geradores de receita compõem cerca de 20% dos portfólios – níveis que se situam entre os praticados por fundos de pensão (cerca de 50%) e os endowments (em torno de 10%).
O Lombard Odier projeta uma queda nas expectativas de retorno com ações nos próximos dez anos, principalmente nos Estados Unidos, onde o prêmio de risco das ações encontra-se em níveis historicamente baixos.
Em 2023, a projeção para o retorno em ações americanas era de 7,6% ao ano; atualmente, esse número foi ajustado para 6,6%. De forma similar, a expectativa para os títulos high yield caiu de 7,6% para 5,8% ao ano, enquanto o ouro registrou um leve aumento, passando de 4% ao ano em 2024 para 4,5% ao ano em 2025.
Por fim, outra tendência relevante é o investimento com propósito, como ESG, filantropia e impacto social. Esses temas vêm se consolidando como pilares fundamentais entre as novas gerações – mesmo que a adesão completa ainda esteja em fase de amadurecimento.