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Crônica de um Assalto em Pleno Ar

Meus caros, padecem os brasileiros de uma modéstia que beira a autoflagelação. Carregamos há décadas a tal “síndrome de vira-lata”, uma convicção quase religiosa de que nosso papel no grande roteiro cósmico é o de um figurante atrapalhado. Aquele personagem secundário que, na falta de um enredo melhor, se define como, e aqui peço vênia pela imagem, “a mosca que pousou no cocô do cavalo, que matou a traição o mocinho, ajudante do xerife”. Sentimo-nos o último elo da cadeia alimentar da autoestima global, um povo capaz de feitos homéricos com um rolo de fita-crepe, mas que ainda trata a mais trivial novidade estrangeira com a mesma solenidade de quem testemunha a invenção do pão de forma.
E, no entanto, em meio a esse vasto Pindorama, nascem mentes que desafiam a gravidade, literal e metaforicamente. Tínhamos, e teimamos em ter, uma joia da coroa chamada Embraer. Uma empresa que não fabricava aviões, mas materializava o impossível. Uma prova cabal de que nosso brilhantismo não era lenda, mas um facto de engenharia que voava pelos céus do mundo.
Eis que, dos céus do norte, desce a gigante Boeing, o supra-sumo da aviação para os americanos, algo tão fundamental quanto o peru no Dia de Ação de Graças. Vieram com a conversa mansa dos impérios, propondo não uma compra, mas uma “parceria estratégica”, uma “joint venture”. Uma generosa oferta para nos ajudar a engraxar as engrenagens do progresso. O país, em seu complexo de inferioridade, quase estendeu um tapete vermelho na pista de pouso.
Ah, a ingenuidade dos colonizados. Enquanto a nação discutia os cifrões, os bilhões que soavam como música celestial, o verdadeiro tesouro não saía pela porta da frente, mas era discretamente abduzido. A Boeing não queria as paredes da fábrica, meus caros. Queria a alma que habitava as pranchetas.
Não levaram máquinas; levaram a magia. Levaram a bruxaria de fazer mil demônios mecânicos e elétricos cantarem em uníssono. Levaram o segredo de tecer fuselagens mais leves que promessa de político e mais fortes que café de beira de estrada. Levaram a mágica de transformar o manche de um piloto num sussurro divino aos ouvidos da máquina. Em suma, levaram mais de 500 dos nossos melhores engenheiros. O produto não era o avião; eram os homens que sonhavam o avião.
E agora, este humilde cronista, com sua mania de fazer perguntas que azedam o leite, indaga: quem foi a alminha sebosa que, em nome da “integração global”, escancarou o cofre? Quem foram os filhotes de cruz-credo que, fardados de estadistas, permitiram que décadas de pesquisa e soberania tecnológica fossem levadas debaixo do braço, como quem furta um saco de pães na feira?
Escutamos os estadistas de plantão afirmando, à época, que “a Embraer tem mais a ganhar do que a perder”. Uma frase de uma ironia tão cortante que deveria ser emoldurada no museu da traição nacional. Foi o clássico “entreguismo técnico disfarçado de sinergia”. Ou, em bom português, o negócio de Jacu. A Boeing entrou com a jaca e a Embraer… bem, a Embraer entrou com a fome de ser aceita no clube dos grandes.
Eis a nossa tragédia particular: somos um povo de uma criatividade vulcânica, de uma inteligência que floresce nos terrenos mais áridos. O que nos falta, porém, é o zelo de um guardião. Em vez de protegermos as joias que forjamos, como a nossa Embraer, nos perdemos no trivial. Nossa genialidade cede espaço à urgência de começar o ano só depois do Carnaval, nossa atenção se esvai na polêmica do campeonato brasileiro, e nosso maior projeto nacional parece ser a emenda do próximo feriado. A tragédia se dá nos bastidores, enquanto a nação assiste ao circo no palco principal.
Agora, a vergonha corre em segredo de justiça, um rio subterrâneo de remorso. Mas não há surpresa. É apenas o eco de uma história antiga, a mesma que trocou ouro por espelhos, pau-brasil por bugigangas. Apenas atualizamos a moeda de troca: hoje, entregamos soberania tecnológica, o futuro. E em troca de quê? De uma palmadinha nas costas e da vaga ilusão de pertencimento. E assim ficamos, olhando para o céu, não mais com o orgulho de ver nossas asas conquistando o mundo, mas com a melancólica certeza de que, quinhentos anos depois, continuamos a ser uma colônia. Uma colônia que, desta vez, entregou voluntariamente o seu direito de voar.

O post Crônica de um Assalto em Pleno Ar apareceu primeiro em O Estado CE.



Estado do Ceará

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