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Crônica de uma Guerra Anunciada (ou, O Bode na Sala)

Meus caros, peço-lhes vênia para, por um instante, pendurar no cabide o humor cearense, essa nossa armadura contra as durezas da vida. Há momentos em que a realidade se impõe com um peso que esmaga a piada antes mesmo que ela nasça. Escrevo, pois, não só com o amor que tenho por este nosso Ceará, mas com a paixão inquieta de quem se sabe parte de um corpo maior, chamado Brasil, e sente cada uma de suas convulsões.
Daqui da minha varanda, com o verde do Parque do Cocó a descansar-me os olhos, as notícias do Rio de Janeiro chegam como estilhaços de uma realidade distante, mas nem por isso menos nossa. O Brasil é este vasto arquipélago de vivências, onde a minha paz se ergue sobre a fundação invisível da guerra alheia.
A nova da semana foi essa pirotecnia de chumbo e dor nos complexos do Alemão e da Penha. Uma operação, garantem as vozes oficiais, gestada por um ano inteiro em salas refrigeradas e sobre mapas coloridos. Um ano de inteligência para cumprir uma centena de mandados. A montanha de estratégia pariu o que a trágica rotina já nos ensinou a esperar. A crônica de uma carnificina, mais do que anunciada.
O Estado, esse ente por vezes paquidérmico, por outras de uma fúria atroz, sentiu-se compelido a mostrar serviço. Afinal, a plateia pedia uma resposta ao espetáculo diário de audácia do crime, que há muito deixou de ser um mero varejista de entorpecentes para se tornar um conglomerado empresarial, com portfólio que vai da “gatonet” compulsória à franquia de “laranjas” em negócios perfeitamente legais. O crime, no Rio, veste terno e gravata com a mesma desenvoltura com que empunha um fuzil.
E então, a força da lei sobe o morro. Alguém, em sã consciência, imaginaria que os anfitriões, donos de um arsenal que faria corar um pequeno exército, receberiam os agentes da ordem com um “Pois não, o mandado é para o senhor de quem?” A recepção foi a de praxe: uma sinfonia de calibres 5.56 e 7.62, com a novidade tecnológica de drones-bomba, um upgrade macabro no delivery do terror.
A resposta, por sua vez, foi a que a cartilha da sobrevivência impõe. Quando a morte é a pergunta, a resposta costuma ser igualmente letal. E assim, na contabilidade fria dos corpos, a operação deixa seu legado: um “baque histórico” no comando do crime, como bradou um oficial. Um baque medido em sacos pretos, entre os quais, não nos esqueçamos, jaziam quatro daqueles que vestiam a farda do Estado. Dois deles, da tropa de elite que, quando chamada à cena, já sabemos que o roteiro não inclui diálogos e afagos. O BOPE não sobe para parlamentar, ou tomar café.
Mas o que me causa um nó na garganta, o que verdadeiramente instala o bode no meio da nossa sala de estar – aquele bicho enorme, imóvel, que todos veem, mas fingem não notar para não estragar a visita –, é a cena seguinte. A coreografia que se segue ao silêncio das armas. A população, a mesma que sofre sob a bota do tráfico, que paga pedágio para existir, desce para o asfalto. E o que gritam? Palavras de ordem contra a truculência do Estado.
Curiosa, para não dizer seletiva, é a nossa capacidade de indignação. Não se veem pneus queimando quando o “tribunal do tráfico” decreta uma sentença de morte no “micro-ondas”, como a do jornalista. Não há passeatas quando um morador é expulso de casa porque sua laje tem uma visão estratégica. A mesma voz que se cala ante a tirania diária do bandido, se ergue, rouca e ressentida, contra o policial que, bem ou mal, é o único uniforme que ainda representa alguma fagulha de ordem. É um paradoxo que nos encara, de braços cruzados e com um sorriso de escárnio no rosto.
E para completar o teatro do absurdo, o balé de declarações entre o governo estadual e o federal. Um diz que avisou, o outro que não foi bem assim, e o diretor da PF, em um arroubo de sinceridade que constrangeu o Ministro da Justiça, admite que soube, mas que o “modelo” da operação não servia para sua turma. Enquanto discutem a etiqueta do convite para a guerra, o cheiro de sangue ainda paira no ar.
Agora, o silêncio retorna. Um silêncio tenso. O “baque” foi dado. E depois? Depois, meu caro, é que a verdadeira operação deveria começar. A de ocupar os espaços não só com fuzis, mas com livros. Não só com blindados, mas com postos de saúde. A de criar uma barreira social, uma muralha de dignidade que nenhum traficante possa transpor.
Do meu Ceará, de onde observo essa tragédia distante com a incômoda sensação de que ela nos serve de espelho e de alerta. Um lembrete de que é preciso cuidar do nosso próprio jardim com zelo diário, para que as mesmas ervas daninhas não tomem conta do solo. Rezo, então, para que lá no Rio a poeira assente e o trabalho de verdade comece. Caso contrário, toda essa dor, todo esse sangue, não terá sido um “baque histórico”. Terá sido apenas mais um capítulo sangrento, num livro que teimamos em reescrever com os mesmos e trágicos erros. E o amanhã, que deveria ser uma página em branco, já nasce manchado de um sangue que nunca seca.



Estado do Ceará

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