
De uns tempos para cá, meus caros, um som insistente tem me acompanhado. Não é o chiado da chaleira no fogo, nem o ranger familiar da minha cadeira de balanço. É um tique-taque. Sutil, quase inaudível, mas constante. É o relógio do mundo que, aparentemente, desandou a correr com uma pressa que não me agrada.
A coisa chegou a um ponto, vejam vocês, que me pego tratando os Estados Unidos pelo nome oficial. E a China, sem uma única piada de pastelaria ou de produtos que se desfazem na primeira chuva. Quando um cearense perde a vontade da piada, é porque percebeu que o caldo não está apenas grosso; está fervendo. E a tampa da panela de pressão começou a tremer.
O grande problema do nosso tempo é que o tabuleiro global está com peças demais e regras de menos. Aquele que antes era o jogador dominante, o americano, parece um enxadrista genial distraído por uma goteira barulhenta na própria sala de estar. Ele sabe que deveria se preocupar com a rainha do adversário, mas o balde que colocou no chão já está quase transbordando, e isso consome toda a sua atenção.
Enquanto ele se ocupa com seus reparos domésticos, os outros jogadores resolveram testar os limites do jogo. A Rússia, por sua vez, sentou-se à mesa com uma expressão de quem não tem mais nada a perder. Joga um jogo de desgaste na Ucrânia e, de tempos em tempos, como quem não quer nada, deixa à mostra um canto daquela carta que ninguém quer ver: uma relíquia sombria dos tempos da Guerra Fria, apenas para lembrar a todos do poder que ela guarda na manga.
E a China… ah, a China joga outra partida. Um xadrez de paciência milenar. Enquanto os outros esbravejam, ela move peões silenciosos: navios que se dizem de pesca, portos que se dizem comerciais, investimentos que se dizem fraternos. Não há alarde. Há apenas o lento e inexorável avanço das peças, ocupando espaços vazios no tabuleiro com uma eficiência de dar calafrios.
E é aqui, neste cenário de nervos à flor da pele, que o tique-taque se torna mais alto. A grande tragédia que se desenha não virá com fanfarra, nem será anunciada em um pronunciamento solene. Ela nascerá do acaso. Será fruto do cálculo mal feito.
Será o erro de um operador de drone sonolento no Oriente Médio; um alarme de radar mal interpretado no Mar do Sul da China; um protocolo seguido à risca demais, num dia errado demais. Será o tropeço que fará a primeira peça do dominó cair.
E nesse momento de pânico e adrenalina, quando a diplomacia for lenta demais, alguém se lembrará daquela carta na manga. Daquela “solução” para acabar com a discussão de uma vez. É o que os estrategistas chamam de “uso tático”, um eufemismo tão elegante quanto perverso para a decisão de atear fogo em uma parte do tabuleiro, na esperança de que o adversário se assuste com as chamas. É a lógica de quem ameaça implodir o prédio para resolver uma briga de condomínio.
O primeiro “bum”, meus amigos, não será o de uma bomba intercontinental. Será menor. Mais localizado. Quase discreto. O problema é que o primeiro “bum” tem o péssimo hábito de gerar ecos. E quase sempre, o eco volta mais forte.
E assim, o tique-taque continua. Cada noticiário, cada nova manobra militar, uma volta a mais no ponteiro. Não é pessimismo, entendam bem. É apenas a constatação de um cronista que olha para este grande relógio e percebe que as engrenagens estão gastas, os ponteiros estão nervosos, e há gente demais disposta a sacudir a máquina para ver o que acontece.