
Dizem os otimistas, essa gente de um bom humor quase ofensivo, que devemos olhar para as crianças e ver o futuro. Tenho praticado o exercício e, confesso, o que tenho visto me causa uma certa vertigem, um calafrio na espinha dorsal da esperança. O amanhã, meus caros, está sendo terceirizado, e a fatura, temo, virá com juros que não calculamos.
Antigamente, quando a vida era em preto e branco e a chatice tinha seu charme, a criação de um ser humano era um ofício quase artesanal. Exigia tempo, presença e um dicionário de “nãos” sempre à mão. Hoje, o processo parece ter sido otimizado, enquadrado na lógica da linha de montagem. O objetivo não é mais formar um cidadão, mas sim produzir um acessório de luxo para o portfólio existencial dos pais.
E que pais! Uma geração de curadores da própria imagem, arquitetos de uma felicidade instagramável, ocupadíssimos em documentar para a posteridade o riso espontâneo (ensaiado à exaustão) e o prato de comida que esfria enquanto se busca o ângulo perfeito. Em meio a essa hercúlea tarefa de gerenciar o próprio marketing, a prole, naturalmente, acaba relegada a um papel coadjuvante. É o bibelô caro, o item de decoração exibido com orgulho na estante virtual, mas que, na prática, junta a poeira do abandono afetivo no canto da sala.
Deste vácuo parental, desta ausência de contorno, não emerge a “criança-Nutella”, frágil e assustada. Brota algo muito mais formidável: o pequeno tirano. O infante absolutista, coroado aos cinco anos, que já domina com maestria a retórica do poder. Aquele que, ao ser contrariado, não chora, mas convoca o departamento jurídico da família, verbalizado na ameaça cristalina ao mestre-escola: “Meu pai paga o seu salário. Uma palavra minha, e você vira estatística do desemprego.”
Ah, a escola… essa outra vítima da modernidade. Deixou de ser um templo do saber para se tornar uma prestadora de serviços, um resort pedagógico com plano de fidelidade. O professor, outrora um sacerdote do conhecimento, foi rebaixado à condição de recreador, um animador de auditório cuja principal função é garantir a satisfação do cliente – a criança, claro, e não seus pagadores. E quando a criatura, em sua jornada de autoafirmação, decide dilacerar a alma de um colega, a instituição, com a agilidade de um burocrata, lava as mãos e emite a nota padrão: “Questões de foro íntimo. Favor tratar com os respectivos responsáveis.”
E os responsáveis, confrontados com a evidência da crueldade de sua obra-prima, reagem com a fúria protetora de uma leoa defendendo um filhote de hiena. A vítima? Exagerada. O agressor? Incompreendido. “Coisas de criança”, sentenciam, absolvendo a si mesmos e à sua miniatura no mesmo decreto.
E assim, sob o aplauso da omissão, vamos fabricando uma legião de pequenos Césares. Seres desprovidos daquela peça fundamental que nos impede de sermos apenas animais engenhosos: a empatia. Educados por telas, que não ensinam o peso do olhar, e criados por pais que confundiram o verbo “amar” com o verbo “postar”, eles marcham para o futuro, afiando sua pequena e insaciável crueldade.
Eis o meu temor. Essas crianças, hoje, são o problema dos outros na reunião de pais e mestres. Amanhã, serão os outros no comando do país. Serão o médico que decidirá se seu caso é “relevante”, o juiz que sentenciará seu destino, o político que legislará sobre sua vida.
E quando esse dia chegar, governados por uma geração que aprendeu que a responsabilidade é um fardo e a compaixão, uma fraqueza, talvez seja tarde demais para perguntar onde foi que erramos. Estaremos ocupados demais tentando sobreviver à colheita daquilo que, tão displicentemente, ajudamos a semear.