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Do Direito à Ignorância e Outras Pragas

A memória, dizem os poetas, é uma ilha de edição. A nossa, a do brasileiro, parece ter evoluído para um modelo mais radical: é um aparelho de amnésia seletiva, com um talento especial para deletar os arquivos mais pesados. Conservo o hábito, talvez antiquado, de manter cópias de segurança do passado recente, uma proeza que, em nossos tempos, os meus amigos usam para rotular a minha memória de algo que beira o absurdo e que equivale a ter uma biblioteca em um mundo de leitores de manchetes.
E, ao folhear essas páginas mentais em seus mínimos detalhes, sentado em minha poltrona, reencontro o roteiro daquele drama global que vivemos há meros cinco anos. Lembro do silêncio que se instalou nas ruas, da matemática macabra dos ausentes à mesa e da corrida desesperada da ciência contra um inimigo invisível. Foi um período sombrio, sim, mas também de uma genialidade espantosa. Vimos a tecnologia dobrar o tempo, criando em meses o que levaria décadas, e assistimos a lampejos de brilhantismo, como o nosso cearense Elmo, um capacete que devolveu o fôlego a milhares de pulmões cansados. Fomos, como espécie, encurralados e respondemos com o que temos de melhor: a inteligência.
Findo o espetáculo de horror, as luzes se reacenderam. E o que fizemos com a lição aprendida? Aparentemente, a arquivamos na gaveta do “assuntos chatos”. Pois o que vejo hoje, de minha poltrona, é um fenômeno de uma bizarrice que faria Ionesco corar: uma rebelião contra o óbvio.
E, para que a conversa não azede em polêmicas recentes, não falemos da vacina de ontem. Falemos daquelas que são parte da mobília da civilização. As vacinas que habitam nossa memória de infância, as gotinhas que nos livraram da paralisia, as injeções que baniram o sarampo, a caxumba e a rubéola para os livros de história. Essas, que eram tão incontestáveis quanto a lei da gravidade, de repente entraram no banco dos réus.
Assistimos, estupefatos, a este novo e sofisticado hobby: o de duvidar de um consenso centenário com a autoridade de quem consultou um oráculo no próprio smartphone. Uma geração que nunca viu um pulmão de aço, mas tem uma opinião firmíssima sobre a poliomielite. Um batalhão de novos especialistas que, armados com a bravura dos ignorantes e o megafone das redes sociais, se sentem no direito de questionar a bula da civilização.
É um luxo perverso. O dandismo de quem flerta com a tragédia por puro tédio intelectual. E o mais fascinante é a origem dessa nova fé: uma desconfiança da ciência que nasce, paradoxalmente, do usufruto de suas maiores glórias. O mesmo aparelho que lhes serve de portal para a desinformação só existe por causa dos mesmos princípios científicos que eles agora, com ar professoral, rejeitam.
O que nos leva à minha modesta dúvida, que insiste como uma nota musical errada numa canção de ninar. Vejo essa arrogância travestida de “ceticismo”, essa crueldade fantasiada de “liberdade de escolha”, e me pergunto, com a angustia de que quem vê um adulto ensinando uma criança a brincar com fogo:
Quando o ser humano vai finalmente entender sua finitude, e utilizar de sua empatia e humildade para entender… que o sagrado direito à própria opinião termina exatamente onde começa o risco da sepultura alheia?



Estado do Ceará

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