Complicações clínicas reacendem o debate sobre segurança, limites profissionais e o impacto da estética digital
O crescimento acelerado da busca por procedimentos estéticos faciais, especialmente aqueles vendidos como minimamente invasivos e de rápida recuperação, trouxe consigo um alerta preocupante: o aumento expressivo de complicações médicas associadas a intervenções conduzidas sem preparo técnico adequado ou fora dos limites legais de atuação profissional. Casos recentes envolvendo duas mulheres, Paula Guerreiro e Juliana, lançaram luz sobre os riscos desse cenário e reacenderam o debate sobre segurança do paciente em cirurgias orofaciais.
Paula procurou um dentista conhecido nas redes sociais como o “Príncipe do Lip Lift” para realizar um procedimento cirúrgico com o objetivo de encurtar o filtro nasal e elevar o lábio superior. O resultado foi grave: inchaço intenso, fratura dentária durante o ato cirúrgico, perda parcial de movimentos faciais e internação em unidade de terapia intensiva (UTI).
Juliana, por sua vez, submeteu-se ao procedimento estético denominado Fox Eyes e relatou dores intensas, além do surgimento de uma depressão anatômica profunda na região temporal, associada a assimetria facial imediata. Ambas registraram boletim de ocorrência por lesão corporal e aguardam desdobramentos nas esferas administrativa e judicial.
Quando a estética se transforma em emergência médica
Segundo informações médicas, o quadro apresentado por Paula é compatível com lesão neurológica periférica, possivelmente provocada por tração excessiva, compressão prolongada ou até secção inadvertida de ramos do nervo facial durante o descolamento dos planos cirúrgicos. A fratura dentária observada no pós-operatório sugere pressão mecânica inadequada sobre a maxila, algo que não se espera em procedimentos conduzidos com técnica e controle adequados. Além disso, a paciente desenvolveu um processo inflamatório acelerado, com formação de hematoma profundo e sinais iniciais de infecção, o que levou à necessidade de monitoramento intensivo.
No caso de Juliana, a depressão na região lateral da órbita aponta para ressecção irregular de tecidos ou tração não fisiológica das fáscias temporais, indicando falha técnica relevante.
Análise técnica: onde os erros podem ter ocorrido
Para compreender os riscos envolvidos, a reportagem ouviu o Dr. Daniel Dias Machado, cirurgião oral sedacionista, mestre em Cirurgia de Cabeça e Pescoço e coordenador de residências em cirurgias orofaciais no convênio Brasil–Peru. De acordo com o especialista, os casos revelam falhas estruturais na condução de procedimentos que exigem domínio profundo da anatomia facial.
1. Planejamento pré-operatório insuficiente
“Nenhuma cirurgia orofacial pode ser considerada simples sem uma análise minuciosa da anatomia dinâmica do paciente. No lip lift, por exemplo, é indispensável avaliar mobilidade labial, espessura muscular, inserções do orbicular e a relação dentolabial. Ignorar isso compromete todo o resultado”, afirma.
Segundo o Dr. Daniel, a priorização da estética imediata, sem compreensão biomecânica, é um erro recorrente.
2. Falta de domínio dos planos cirúrgicos
O lip lift exige descolamento preciso no plano subnasal, preservação vascular e extremo cuidado com os ramos bucais do nervo facial.
“Quando o profissional não domina os planos corretos de descolamento, surgem sangramentos excessivos, secções musculares indevidas e lesões neurais. Isso explica quadros de perda de movimento ou parestesia”, explica.
3. Sedação e analgesia mal conduzidas
Outro ponto crítico é o manejo anestésico. Compressões exageradas, manobras agressivas ou manipulação inadequada, especialmente quando o paciente ainda reage a estímulos, podem causar danos estruturais, inclusive fratura dentária.
“Fraturas dentárias em cirurgias labiais indicam força mal distribuída. Isso simplesmente não deveria acontecer quando a técnica é respeitada”, reforça.
4. A influência de técnicas “virais” não validadas
O especialista também chama atenção para a transformação de procedimentos cirúrgicos complexos em marcas de internet:
“Nomes como ‘Fox Eyes’ ou ‘Lip Lift X’ não substituem ciência. São variações de princípios cirúrgicos reais. O perigo é aplicar uma marca sem compreensão profunda dos riscos anatômicos envolvidos.”
Redes sociais, popularidade e falsa segurança
O profissional envolvido acumula milhares de seguidores e se apresenta como especialista em harmonização facial. Para o Dr. Daniel, esse fator amplia o risco:
“Seguidores não equivalem a treinamento. Medicina não é performance. Cirurgia exige residência, supervisão e limites éticos claros.”
Ele alerta que a inexistência imediata de punições disciplinares não garante segurança, podendo refletir apenas morosidade na apuração dos casos.
Desdobramentos legais e éticos
Os boletins de ocorrência por lesão corporal configuram o início de processos de responsabilização civil e criminal. Em paralelo, procedimentos administrativos em conselhos profissionais podem resultar em advertência, suspensão ou cassação do exercício profissional, caso se confirme imperícia, imprudência ou negligência.
Como o paciente pode se proteger
O Dr. Daniel orienta que, antes de qualquer procedimento cirúrgico facial, o paciente deve:
- verificar formação cirúrgica formal, não apenas cursos livres;
- exigir planejamento detalhado e explicação técnica;
- desconfiar de promessas de procedimentos “rápidos e sem risco”;
- certificar-se de que o local possui infraestrutura para emergências;
- priorizar profissionais inseridos em residências e instituições credenciadas.
Conclusão: quando a estética ignora a ciência
Os casos expostos revelam um problema crescente: a banalização de cirurgias orofaciais, impulsionada por marketing agressivo e visibilidade digital. Para o Dr. Daniel Dias Machado, a solução passa por regulação rigorosa, educação da população e valorização da formação técnica estruturada:
“A estética facial pode transformar vidas positivamente. Mas sem seriedade cirúrgica, vira risco, dor e, como vimos, até internação em UTI.”
Enquanto aguardam responsabilizações, as vítimas tornam-se um alerta claro: segurança do paciente deve sempre estar acima da estética e do marketing.