Em 2 de janeiro deste ano, Charles Hoskinson, cofundador das plataformas de criptomoeda Ethereum e Cardano, avisou no X: “Estou me preparando para passar cinco dias sozinho em total escuridão (…) Um pouco de escuridão ajuda em nosso crescimento”.
E lá foi o empresário de 37 anos rumo ao retiro Sky Cave, em Klamath Falls, no Oregon — convicto de que, em um mundo dominado pela inteligência artificial, o autoconhecimento é o “último bastão verdadeiramente humano” contra a “escravidão algorítmica”. Mas ele não aguentou. Depois de apenas 12 horas, saiu apavorado do quarto escuro de 37 metros quadrados.
“Tive de encerrar o retiro mais cedo devido a uma combinação de fatores: sombras aterrorizantes corroendo minha alma, demônios que causam paralisia do sono e a incapacidade de respirar na caverna”, explicaria em 6 de janeiro, também no X. Se ele tentaria novamente? Sim, sem dúvida, respondeu a seus seguidores.
Hoskinson faz parte de um grupo cada vez maior de empresários e executivos, sobretudo da tecnologia, atletas, artistas e celebridades que buscam nos retiros na escuridão uma forma de expansão da consciência: um mergulho na ausência de luz na busca pela luz do autoconhecimento.
Os lugares ainda não são muitos; no máximo, uma centena no mundo. Entre todos, o Sky Cave é sem dúvida o mais badalado. Localizado no sul montanhoso do Oregon, foi fundado em 2020 pelo psicólogo Scott Berman. A US$ 1.770 a estadia de quatro dias, a propriedade dispõe de apenas três “cavernas” e a fila de espera é hoje de dois anos.
Por lá passaram também o quarterback de futebol americano Aaron Rodgers, o triatleta Colin O’Brady, o pugilista britânico Anthony Joshua e a atriz Tiffany Haddish.
O ex-jogador de basquete Dwight Howard, um dos grandes nomes da NBA, depois de três dias, emergiu da escuridão maravilhado. “Foi a melhor coisa que já fiz”, conta em suas redes sociais. “A vida parece simples novamente.”
O empreendedor Jason Halbert, ex-vice-presidente de pessoas e segurança global da Snap Inc., passou por experiência semelhante. Em entrevista ao podcast The Profile, ele compara o efeito do retiro de cinco dias e quatro noites a fazer uma “faxina” em seu escritório: “Você fica apenas com sonhos e pensamentos”, o que lhe tornou, como diz, “um profissional, um pai e um marido melhor”.
Porta destrancada
Os retiros funcionam todos basicamente da mesma forma. O “viajante” fica na mais absoluta escuridão — e solidão. As três refeições são servidas por uma escotilha, à prova de qualquer fresta de luz. Lá dentro, tudo é feito à base do tato. E a porta fica destrancada. Quem quiser sair, está livre para partir a qualquer momento.
“Esta é uma oportunidade para que as pessoas se desconectem do constante bombardeio sensorial da vida moderna e mergulhem na autorreflexão”, diz Berman em entrevista ao blog do Skidmore College, onde se formou. “É como visitar um velho amigo que você não vê há algum tempo… você se reconecta à medida que o relacionamento continua a crescer e se aprofundar.”

No retiro do Oregon, o quarto é equipado com cama, uma mesinha para as refeições, um canto para a prática de ioga e meditação e banheiro (Foto: skycaveretreats.com)

“Sombras aterrorizantes” fizeram Charles Hoskinson abandonar o retiro depois de apenas 12 horas de isolamento no escuro (Foto: commons.wikimedia.org)

Ao emergir da escuridão, a atriz americana Tiffany Haddish brinca: “É melhor no escuro” (Foto: YouTube)

“Nunca me quebrei como a escuridão me quebrou”, diz o empreendedor Aubrey Marcus, no documentário “Awake in the Darkness” (Foto: aubreymarcus.com)

“Uma pessoa que esteja passando por um momento de ansiedade ou depressão, por exemplo, pode ampliar a autopercepção dos sintomas negativos”, alerta a psiquiatra e psicoterapeuta Nina Ferreira (foto: Arquivo pessoal)

Ex-VP da Snap Inc., Jason Halbert comparou o retiro a fazer uma “faxina no escritório” (Foto: globenewswire.com)

“A vida parece simples novamente”, diz ex-jogador de basquete Dwight Howard, depois de três dias na escuridão (Foto: commons.wikimedia.org)

Desde 2020, Scott Berman já recebeu cerca de 300 pessoas no Sky Cave (Foto: skidmore.edu)

O pesquisador Andrew Holecek compara os retiros no escuro a “meditação com esteroides” (Foto: andrewholecek.com)
Nosso cérebro é capaz de processar uma quantidade enorme de informações — o equivalente a cerca de 11 milhões de bits de dados por segundo. Mas a percepção consciente só consegue assimilar 0,0004% deles. O restante é trabalhado subconscientemente. Imagine, portanto, o quanto de nossas decisões, sentimentos, comportamentos e emoções são moldados por fatores de cuja existência nem sequer desconfiamos.
E, como a visão, entre todos os sentidos, é nossa principal janela para o mundo exterior, a privação total de luz por longos períodos agilizaria o contato com nossos aspectos mais sombrios — levando em poucos dias a um estado de autorreflexão que a psicanálise e a psicoterapia demoram anos para atingir.
Como compara Andrew Holecek, consultor de pesquisa do Programa de Neurociência Cognitiva da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, os retiros no escuro são como sessões de “meditação com esteroides”. A suposta rapidez de resultados ajuda a explicar o sucesso atual da prática.
“Holofote para nossas sombras”
O documentário Awake in the Darkness também tem contribuído para a popularidade dos “mergulhos na escuridão”.
Lançado em 2023, o filme narra a jornada de cinco dias em um retiro na Floresta Negra, na Alemanha, do empreendedor Aubrey Marcus — “empresário de bem-estar”, ele foi o fundador da Onnit, a marca de suplementos alimentares comprada pela Unilever em 2021.
“Já tive muitas experiências difíceis. Sessões implacáveis de ayahuasca, saunas inevitáveis, frio cortante nas montanhas e acidentes de carro que destruíram meu rosto. Mas nunca me quebrei como a escuridão me quebrou. Passar uma semana no escuro é indescritível. Da solidão silenciosa e desesperada, da fragilidade absoluta da sua cegueira às visões implacáveis (…) que preenchem o vazio com mensagens e horrores”, conta Marcus, de 44 anos.
E ele conclui: “É outro nível de vulnerabilidade. Nunca chorei assim, rezei assim ou ri assim na frente de ninguém. A escuridão é o holofote para todas as nossas sombras”.
O escuro é um de nossos medos mais primitivos, fundamental na história da evolução da espécie. Antes da descoberta do fogo, há cerca de 400 mil anos, quando a noite caía, nossos antepassados ficavam à mercê dos predadores que poderiam vir de qualquer lado, a qualquer momento, sem que eles tivessem chance de se proteger. A ausência de luz os mantinha em alerta.
É fácil entender, portanto, por que o enfrentamento da escuridão está associado a um suposto processo de autoconhecimento.
O isolamento em ambientes escuros foi adotado como rito de passagem e elevação espiritual por várias sociedades e religiões ancestrais — uma ferramenta de conexão com o que se convencionou chamar de “consciência cósmica”.
A prática, por exemplo, é adotada desde o século 7 pelo budismo tibetano. Mas hoje só é conduzida pelos mais experientes e, mesmo assim, com supervisão. O cuidado se explica.
“Alguém que esteja passando por um momento de ansiedade ou depressão pode ampliar a autopercepção dos sintomas negativos”, diz a psiquiatra e psicoterapeuta Nina Ferreira, em conversa com o NeoFeed.
Para se ter ideia, a esses pacientes não é indicada nem a meditação tradicional, lembra a especialista. A introspecção, em alguns casos, oferece perigos, sobretudo sem suporte.
A psiquiatra é veemente: “As pessoas têm traumas dos quais elas não têm nem lembrança consciente. Frequentemente, essas recordações só vêm à tona depois de anos de terapia e acompanhamento. Imagine se isso acontece enquanto elas estão sozinhas em um ambiente escuro. Qual é a chance de isso ajudar? Nenhuma. Zero”.
A viagem metafórica de Jung
Todos os seres vivos funcionam com base em um relógio interno, regido pela alternância do dia e da noite — do qual a melatonina, o hormônio do sono, produzido na ausência de luz, é seu principal maestro.
Se somos submetidos ao escuro por longos períodos, nossa química cerebral entra em descompasso e todos os sistemas do organismo são impactados.
“Quando privado dos estímulos visuais por muito tempo, o cérebro fica sem dados, sem informações de como funcionar e a pessoa tende a desorganizar mais facilmente”, diz Nina.
Não é raro entre os “psiconautas da escuridão”relatos de alucinações e delírios. Para eles, esses momentos seriam de “iluminação”, deflagrados por uma descarga de alucinógenos endógenos.
Mas não há nenhuma comprovação científica de que isso de fato ocorra. Para a neurociência, por enquanto, o que se sabe é que o desarranjo neural aumenta os riscos de crises psicóticas em pessoas com propensão ao problema. A probabilidade até pode ser pequena, mas não há como saber de antemão quem é vulnerável ou não aos surtos.
Ao postular a “teoria da sombra” entre os anos 1930 e 1940, o psiquiatra suíço Carl Jung (1875-1961) já dizia que o contato com desejos, sentimentos e emoções reprimidos costuma ser penoso — remédio amargo, porém imprescindível na busca pela integralidade do ser.
“Você não se torna iluminado imaginando figuras de luz, mas sim ao tornar a escuridão consciente”, dizia o fundador da psicologia analítica.
A jornada rumo à escuridão de Jung, porém, é metafórica. Um processo longo, conduzido por especialistas, e muito diferente da viagem literal proposta agora pelos (apressados) “viajantes da consciência”.