
Há tempos venho me dedicando à dolorosa arte de observar. Assisto aos telejornais e leio os periódicos, tanto aqui do nosso Siará quanto do restante de Pindorama, e me deparo com uma tragicomédia de tal magnitude que faria Molière ou Aristófanes — os grandes mestres da sátira — corarem de vergonha e pedirem aposentadoria precoce.
O enredo é rocambolesco. Tivemos uma representante da Câmara Federal, eleita para legislar, que decidiu encenar um filme de ação de quinta categoria. Acusada de falsidade ideológica e de contratar hackers para invadir sistemas federais (artigos do Código Penal que dispenso citar, pois a lei em Pindorama anda mais flexível que bambu ao vento), a nobre parlamentar protagonizou a cena inesquecível: caminhar à luz do dia, numa das vias mais nobres de São Paulo, empunhando uma pistola 9mm. Não perseguia bandidos, mas um jornalista desarmado, culpado apenas de lhe ferir o ego com palavras.
Pois bem, segundo o roteiro desta ópera-bufa, após o trâmite na Alta Corte e com o destino selado, a protagonista alçou voo — literalmente — rumo à Itália, onde agora se encontra detida, aguardando extradição.
E foi aí, meus prezados, que a “Ilha da Fantasia” tentou mostrar sua força corporativista. Na calada da madrugada, a Mesa Diretora daquela Casa, capitaneada por seu presidente, decidiu brindar o absurdo. Num ato de pequenez política que beirou o obsceno, optaram por não cassar o mandato, tentando manter o salário e as prerrogativas de uma foragida condenada.
A indignação sobe à garganta quando lembramos que aquele plenário já foi palco de gigantes como Ulysses Guimarães, Miguel Arraes, Mário Covas e JK. Hoje, o que vemos é a aplicação descarada de dois pesos e duas medidas.
A prova cabal? Na mesma semana em que se tentou proteger a foragida armada, suspende-se por seis meses o mandato de outro deputado cujo crime foi chutar o traseiro de um colega que ofendera sua mãe moribunda. Para a defesa da honra familiar, o rigor implacável; para os crimes contra a fé pública e a ameaça armada, a tentativa vergonhosa de “passar o pano”.
Contudo, prezado leitor, seria leviano e injusto de minha parte jogar toda a água suja fora com o bebê dentro. É preciso reconhecer, até para manter acesa a chama da esperança, que ainda há resistência. Naquele mesmo plenário, existem homens e mulheres valorosos, que ainda rezam pela cartilha do verdadeiro “servidor público”. Gente que luta contra a maré, que entende que o mandato é sacerdócio e que, certamente, se envergonha dessas manobras. É neles, nesses poucos que não dobram a espinha para a conveniência, que nossa esperança jaz, mesmo quando abafados pelo ruído daqueles que agem como “filhos bastardos de Mecenas”, patrocinando interesses privados com dinheiro público.
Mas, como em Pindorama o roteiro muda enquanto a plateia ainda está comprando a pipoca, tivemos a reviravolta final.
Quando parecia que a impunidade venceria pelo cansaço, o Supremo Tribunal Federal, numa ação fulminante, anulou a decisão da Mesa Diretora e retirou o cargo da congressista. O martelo bateu mais forte que a proteção corporativa.
E o que temos agora? Não apenas o fim de um mandato que já nascia morto, mas a inauguração de um novo e perigoso ringue. Lá vamos nós para mais um embate titânico entre Judiciário e Legislativo. De um lado, a Câmara, que ao tentar proteger o indefensável, acabou desmoralizada e ferida em sua autonomia; do outro, o Supremo, que precisou intervir para fazer valer o óbvio ululante, mas que, ao fazê-lo, estica ainda mais a corda da tensão institucional.
No meio desse fogo cruzado, onde vaidades e poderes se chocam, sobra para a estabilidade democrática de Pindorama apenas o papel de espectadora atônita desse cabo de guerra. O povo fica no meio do tiroteio, enquanto as instituições duelam para ver quem manda mais.
Encerro com a sabedoria de quem viu impérios oscilarem entre a virtude e o vício, e que serve como uma luva para esse momento onde um poder aponta o dedo para o outro, esquecendo-se de seus próprios erros. Como diria o grande filósofo estoico Lucius Annaeus Seneca (que, para os desavisados, não era grego, mas cidadão romano nascido na Hispânia):
“Aliena vitia in oculis habemus, a tergo nostra sunt.”
(Temos os vícios alheios diante dos olhos, mas os nossos estão nas nossas costas.)