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‘Que país é este?’, veja poema lido por ministra Carmén Lúcia no julgamento de Bolsonaro na íntegra | Política

'Que país é este?', veja poema lido por ministra Carmén Lúcia no julgamento de Bolsonaro na íntegra | Política

O poema “Que país é este?” é do autor Affonso Romano de Sant’Anna, que o dedicou a Raymundo Faoro, publicado originalmente em 1980.

Veja o poema na íntegra abaixo:

Mas já soube datas, guerras, estátuas

– e desfilei de tênis para o ditador.

Vinha de um “berço esplêndido” para um “futuro radioso”

e éramos maiores em tudo

– discursando rios e pretensão.

Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça

em busca da especiosa raiz? ou deveria

Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo

comendo o que as traças descomem

o Quinto Império, o primeiro portulano, a viciosa visão do paraíso

que nos impeliu a errar aqui?

Subo, de joelhos, as escadas dos arquivos

nacionais, como qualquer santo barroco

no mofo dos papiros, no bolor

das pias batismais, no bodum das vestes reais

a ver o que se salvou com o tempo

Há 500 anos caçamos índios e operários,

há 500 anos queimamos árvores e hereges,

há 500 anos estupramos livros e mulheres,

há 500 anos sugamos negras e aluguéis.

que o futuro a Deus pertence,

que Deus nasceu na Bahia,

que São Jorge é que é guerreiro,

que do amanhã ninguém sabe,

que conosco ninguém pode,

que quem não pode sacode.

Há 500 anos somos pretos de alma branca,

não somos nada violentos,

quem espera sempre alcança

e quem não chora não mama

ou quem tem padrinho vivo

este é o país do futuro,

antes tarde do que nunca,

mais vale quem Deus ajuda

e a Europa ainda se curva.

colhendo uvas com os olhos,

semeamos promessa e vento

sonhamos a paz da Suécia

vendemos siris na estrada

bebemos cachaça e brahma

joaquim silvério e derrama,

e o futebol nos conclama,

pois Jesus Cristo nos mata

Este é um país de síndicos em geral,

este é um país de cínicos em geral,

este é um país de civis e generais.

Este é o país do descontínuo

a esperança que emparedam

e nesse mundo às avessas

– a cor da noite é obsclara

Sei que há outras pátrias. Mas

mato o touro nesta Espanha,

planto o lodo neste Nilo,

caço o almoço nesta Zâmbia,

vivo eterno em meu Nepal.

Esta é a rua em que brinquei,

a bola de meia que chutei,

a cabra-cega que encontrei,

o passa-anel que repassei,

e é possível que por ele, imerecido,

Minha geração se fez de terços e rosários:

– houve sangue e desamor. Por isto,

canto-o-chão mais áspero e cato-me

outra esses duros perfis.

Deveria eu catar os que sobraram,

os que sobreviveram em suas tocas

e num seminário de erradios ratos

Vivo no século vinte, sigo para o vinte e um

e aldeado vacum. Sei que daqui a pouco

loucura de quantos generais a cavalo

escalpelando índios nos murais,

queimando caravelas e livros

– nas fogueiras e cais,

homens gordos melosos sorrisos comensais

politicando subúrbios e arando votos

e benesses nos palanques oficiais.

Leio, releio os exegetas.

Quanto mais leio, descreio. Insisto?

Deve ser um mal do século.

– se não for um mal de vista.

Já pensei: – é erro meu. Não nasci no tempo certo.

Em vez de um poeta crente

Em vez da epopéia nobre,

Mas sigo o meu trilho. Falo o que sinto

– pois morro sempre que calo.

Minha geração se fez de lições mal-aprendidas

– e classes despreparadas.

Olhávamos ávidos o calendário. Éramos jovens.

Tínhamos a “história” ao nosso lado. Muitos

maduravam um rubro outubro

outros iam ardendo um torpe agosto.

Mas nem sempre ao verde abril

Às vezes se segue o fosso

– e o roer do magro osso.

E o que era a revolução outrora

agora passa à convulsão inglória.

E enquanto ardíamos a derrota como escória

e os vencedores nos palácios espocavam seus champanhas

o reprovado aluno aprendia

com quantos paus se faz a derrisória estória.

Convertidos em alvo e presa da real caçada

um festival de caça aos pombos

– enquanto raiava sangüínea e fresca a madrugada.

Os mais afoitos e desesperados

em vez de regressarem como eu

sobre os covardes passos,

e em vez de abrirem suas tendas para a fome dos desertos,

seguiram no horizonte uma miragem

Vi-os lubrificando suas armas

e os vi tombados pelas ruas e grutas.

Vi-os arrebatando louros e mulheres

e serem sepultados às ocultas.

Vi-os pisando o palco da tropical tragédia

e por mais que os advertisse do inevitável final

não pude lhes poupar o sangue e o ritual.

os que sobraram vivem em escuras

e européias alamedas, em subterrâneos

de saudade, aspirando a um chão-de-estrelas,

plangendo um violão com seu violado desejo

a colher flores em suecos cemitérios.

todo o país seja apenas um ajuntamento

e o conseqüente aviltamento

– e uma insolvente cicatriz.

Mas este é o que me deram,

e este é o que eu lamento,

– livrar-me do meu tormento.

Meu problema, parece, é mesmo de princípio:

– do prazer e da realidade

– mas só agrava com a idade.

engolindo seu fel com mel.

Sim. Este é um povo bom. Mas isto também diziam

enquanto amassavam o barro da carne escrava.

enquanto me assaltam a casa,

enquanto recolho meu sermão ao vento.

Povo. Como cicatrizar nas faces sua imagem perversa e una?

Desconfio muito do povo. O povo, com razão,

– desconfia muito de mim.

Estivemos juntos na praça, na trapaça e na desgraça,

– nem eu posso convertê-lo.

A menos que suba estádios, antenas, montanhas

e com três mentiras eternas

o seduza para além da ordem moral.

Quando cruzamos pelas ruas

não vejo nenhum carinho ou especial predileção nos seus olhos.

Há antes incômoda suspeita. Agarro documentos, embrulhos, família

a prevenir mal-entendidos sangrentos.

Daí, já vejo as manchetes:

– o poeta que matou o povo

– o povo que só/çobrou ao poeta

– (ou o poeta apesar do povo?)

– Eles não vão te perdoar

– me adverte o exegeta.

Mas como um país não é a soma de rios, leis, nomes de ruas, questionários

e a cidade do interior não é apenas gás neon, quermesse e fonte luminosa,

uma mulher também não é só capa de revista, bundas e peitos fingindo que

também são os falsários

e não apenas os operários,

também são os sifilíticos

não só atletas e políticos,

são as bichas, putas e artistas

e heróis de falsas lutas,

são as costureiras e dondocas

e os que estão nos eitos e docas.

Assim como uma religião não se faz só de missas na matriz,

mas de mártires e esmolas, muito sangue e cicatriz,

para resgatar os ferros de seus ombros

poetas negros que refaçam seus palmares e quilombos.

Um país não pode ser só a soma

de censuras redondas e quilômetros

quadrados de aventura, e o povo

que não sou um poeta brasileiro. Sequer

um poeta mineiro. Não há fazendas, morros,

casas velhas, barroquismos nos meus versos.

Embora meu pai viesse de Ouro Preto com bandas de música polícia militar casos

[de assombração e uma alma milenar,

embora minha mãe fosse imigrando hortaliças protestantes tecendo filhos nas

[fábricas e amassando a fé e o pão,

olho Minas com um amor distante,

como se eu, e não minha mulher

– fosse um poeta etíope.

Fácil não era apenas ao tempo das arcádias

entre cupidos e sanfoninhas,

fácil também era ao tempo dos partidos:

– o poeta sabia “história”

o povo era seu hobby e profissão,

o povo era seu cristo e salvação.

O povo, no entanto, não é o cão

– o lobo. Ambos são povo.

é o seu próprio cão e lobo.

Uma coisa é o povo, outra a fome.

Se chamais povo à malta de famintos,

se chamais povo à marcha regular das armas,

se chamais povo aos urros e silvos no esporte popular

então mais amo uma manada de búfalos em Marajó

e diferença já não há

entre as formigas que devastam minha horta

e as hordas de gafanhoto de 1948

– que em carnaval de fome

o próprio povo celebrou.

não pode ser sempre o coletivo de fome.

não pode ser um séquito sem nome.

não pode ser o diminutivo de homem.

deve estar cansado desse nome,

embora seu instinto o leve à agressão



Valor Econômico

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