Com os atrasos na geração de eletricidade, o Ceará pode perder o posto de hub mundial de hidrogênio verde (H₂V). Essa foi a consideração feita por Francisco Habib, diretor de engenharia e membro do conselho da Casa dos Ventos, empresa cearense do ramo de energias renováveis.
Ele mostrou muita preocupação com a infraestrutura elétrica que existe atualmente no Estado, sobretudo na região do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (Cipp), local onde serão construídas as principais plantas de H₂V do País.
Habib explicou que o atraso para a conclusão das obras que vão ampliar as linhas de transmissão para a região do Cipp, bem como as sucessivas negativas do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) para os projetos no local, estão gerando impasses que trazem mais dúvidas do que certezas sobre o desenvolvimento de projetos de H₂V.
Em nota, o Governo do Estado do Ceará, por meio da Secretaria da Casa Civil, rechaçou a perda de posição do território cearense como principal ponto de hidrogênio verde, e defende que a região do Cipp mantém a condição de hub.
Segundo a pasta, são US$ 24 bilhões (mais de R$ 136 bilhões na cotação atual) em investimentos previstos para o local, com previsão de duplicar os empregos diretos e indiretos, atualmente 80 mil.
“As empresas com pré-contratos assinados têm prazos diferentes para tomar suas decisões finais de investimento, o que pode ocorrer até 2027”, registra a secretaria, que ainda garante que a estrutura do Cipp “será modernizada”.
ONS diz que não existe rede de transmissão para atender solicitações
A reportagem procurou o ONS para entender o que está sendo feito para atuar na liberação das plantas de H₂V no Cipp, bem como do data center anunciado pela Casa dos Ventos. Por meio de nota, a entidade destacou que, atualmente, não existe “rede de transmissão disponível para atender, com segurança, os elevados montantes de demanda solicitados”.
Apesar disso, o Operador apontou que “vem atuando para viabilizar soluções estruturantes que permitam, de forma segura e sustentável, a futura conexão dessas novas cargas, resguardando a confiabilidade do atendimento a todos os usuários do sistema”.
Habib, no entanto, vai além e mostra diz que é preciso “começar agora” a desenvolver com urgência os projetos para evitar a fuga de investimentos.
Se a gente não conseguir entregar essa amônia até 2030, nosso cliente vai procurar outra planta para fornecer, não tenha dúvida. Nossa entrega é 2029. Tem que começar agora. A gente tem avançado em engenharia, em todas as questões ambientais, colocando um dinheiro bastante alto para o desenvolvimento desse projeto para que ele chegue no início de obra no fim de 2026 correndo o risco de dar tudo errado. Se não resolver o problema de conexão, não se conecta o projeto. Hoje o projeto de amônia não tem conexão”.
Ele ainda avançou nos detalhes que ameaçam a posição cearense de hub mundial de H₂V. Segundo Habib, um investimento do porte das plantas de hidrogênio verde é algo para solução a longo prazo, de até sete anos. A decisão em transformar o Cipp no principal local para produção do composto remonta ao começo da pandemia.
“Essas cargas superam a capacidade atual do grid, porque são muito grandes. De repente tem 2 ou 3 gigawatts (GW) querendo se conectar e, de fato, o sistema não foi planejado para isso. Só que essa discussão de hidrogênio verde é de 2020. O hub do hidrogênio acelerou em 2021. Quer dizer, a gente não ter conexão viável em 2029 é um problema de planejamento. É o mesmo da construção de um porto: não se constrói um porto porque tem 300 navios querendo atracar, e sim porque precisa trazer investimento, como o Pecém faz. O hidrogênio verde e os data centers não são diferentes”, considerou.
Habib conversou com a reportagem do Diário do Nordeste durante a 5ª edição do InterSolar Summit Brasil, evento que discutiu a aplicação das energias renováveis no País.
Casa dos Ventos já teve dois empreendimentos barrados
O alerta feito por Habib acontece após a Casa dos Ventos, assim como a Voltalia e a Fortescue, terem plantas a serem instaladas na região do Cipp barradas. No caso da empresa cearense, o ONS negou acesso à rede de energia tanto da planta de H₂V quanto do data center, o primeiro de grande porte a ser construído no local.
A situação ocorre principalmente desde 2023. Em 15 de agosto daquele ano, uma queda de tensão causou o desligamento da linha de transmissão Quixadá-Fortaleza II.
Uma “atuação indevida” do sistema de proteção causada por uma falha no desempenho de usinas eólicas e solares foi relatada pelo ONS como principal causa que culminou no apagão que afetou todas as unidades federativas do Brasil, exceto Roraima, que ainda não é interligada ao Sistema Interligado Nacional.
Em virtude dessa ação do ONS, a geração das energias eólica e solar está abaixo da capacidade após determinação de curtailment. Para evitar sobrecargas nas linhas de transmissão pela alta produção dos dois tipos de eletricidade, caracterizadas pela intermitência na geração, o operador opta por estabelecer um limite de quanto cada um dos modais pode gerar, equilibrando o sistema.
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Semáforos ficaram inoperantes durante apagão de 15 de agosto de 2023
Kid Junior
Esse é um dos motivos no qual é atribuída a negativa do ONS. Como as plantas de H₂V e o data center devem consumir muito mais energia do que atualmente é gerada na região, para evitar a sobrecarga do sistema, é adotada uma postura cautelosa por parte do operador.
“Os pareceres de acesso foram todos negados. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) divulgou um estudo ano passado dizendo ter margem, em todos os nossos cálculos, tinha margem, mas o ONS decidiu que não tem mais margem. Se não tem margem, parecer de acesso negado, não faz projeto”, explanou Francisco Habib.
“A dinâmica é complexa, mas é o que é. As empresas tomaram a decisão de voltar para a fila pedindo revisão, e no fim os projetos só vão acontecer se tiverem margem. Isso envolve teoricamente outras linhas de transmissão, outros investimentos, outra visão de operação. A gente hoje depende do ONS liberar a conexão do projeto”, acrescentou.
Nordeste já pode receber cargas de H₂V, afirma EPE
O estudo destacado por Francisco Habib foi divulgado em outubro do ano passado pela EPE. Foram avaliados oito pontos de conexão em 500 quilovolts (kV), todos na região Nordeste, incluindo a subestação Pecém III, que vai abranger as plantas de H₂V no Cipp.
Conforme a EPE, “o sistema existente e planejado da região Nordeste já possui capacidade para conexão de cargas de grande porte, suficientes para o início do desenvolvimento de empreendimentos de produção de hidrogênio”.
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Foto da planta de H2V da EDP no Complexo do Pecém, onde a Fortescue implantará uma grande planta para produzir hidrogênio verde
EDP / Divulgação
A pesquisa vai além e inclui também os data centers, que também demandam um alto gasto energético para se manter em funcionamento, principalmente os centros de processamento de dados que querem hospedar tecnologias com inteligência artificial.
“Apesar de o foco da análise ter sido para a conexão de cargas de produção de hidrogênio, os resultados de margens apresentados para os pontos de conexão selecionados se aplicam a quaisquer tipos de cargas de grande porte, inclusive a projetos de data centers, empreendimentos para os quais têm se observado também um aumento no interesse de implantação na região Nordeste do Brasil”, pontua o estudo.
Subestação Pecém III será construída pela iniciativa privada, diz Casa dos Ventos
Segundo Francisco Habib, a subestação de energia que ficará instalada na área II da Zona de Processamento de Exportação (ZPE) do Cipp terá um investimento que partirá as empresas envolvidas nas plantas de amônia, além da própria Casa dos Ventos, que tenta viabilizar um data center no local, ainda pendente de aprovação governamental.
A subestação de Pecém não tem mais condição de conexão. Quem vai fazer o investimento são as empresas. Isso está em discussão com o Cipp. A iniciativa privada está tentando viabilizar um ponto de conexão no sistema para múltiplas plantas. Pecém 3 é uma subestação que só depende hoje do investidor e do Cipp. Isso está andando super bem. É que o investidor só vai colocar o dinheiro no fim do dia, seja a Casa dos Ventos ou a Fortescue, se tiver conexão.
“É um ativo, uma solução física, mas pode ser um elefante branco se não tiver margem. Precisa de um parecer de acesso, assinar um contrato de conexão e se executa. Qual que é a nossa decisão? Vamos desenvolver Pecém 3, o projeto de engenharia completo, deixar ele pronto para ser executado à espera da gente ter essa conexão”, completou.
“Sem eletricidade, não tem projeto”
O grande desafio atual no qual Francisco Habib se debruçou é a margem de conexão. Ela é o que garante que os projetos possam acessar à infraestrutura de energia. Ele definiu como funciona o acesso das grandes plantas à rede, citando os projetos da Casa dos Ventos e da Fortescue.
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Subestação de energia no Pecém precisa ser construída para dar escoamento à produção do hidrogênio verde
Saulo Cruz/MME
“Estamos muito adiantados e trabalhando juntos na solução de infraestrutura de tancagem, na Pecém 3, mas são dois projetos que só vão efetivamente para frente com a premissa básica de eletricidade. Sem eletricidade, não tem projeto. A gente consegue até construir (linha de transmissão), só que precisa da margem de conexão. Se eu não tiver o direito de acessar o grid, porque eu não tenho margem contratada, não adianta”, lamentou.
“Não adianta construir a linha se o ONS falar: ‘Não, não pode se conectar’. Pode até construir o ativo físico, mas não pode se conectar. Tem a solução física, não tem a solução contratual. Pode construir uma planta de amônia, mas você não pode se conectar porque a única forma de se conectar ao sistema é por meio de um parecer de acesso e a assinatura do contrato de conexão que vem do ONS”, frisou Habib.
ABIHV acha “prematuro” falar em perda de hub no Ceará
A reportagem também procurou a Associação Brasileira da Indústria do Hidrogênio Verde (ABIHV) para discutir a questão. Em nota, a entidade admitiu que existem desafios estruturais que podem prejudicar o desenvolvimento da cadeia produtiva, mas pontuou que é muito cedo para definir se o Ceará pode perder a condição de hub de H₂V.
“Ainda é prematuro falar em perda do protagonismo do Ceará como hub de hidrogênio verde. Existem várias soluções em andamento para superar os desafios atuais, especialmente no acesso ao grid. A ONS está revisando decisões anteriores e deve restituir parte da capacidade que havia sido retirada do sistema em janeiro. Além disso, a EPE está empenhada em antecipar a entrega do R1, o que permitirá acelerar as obras de infraestrutura de transmissão, inclusive para os 4 GW já autorizados pelo MME.
A ABIHV ressaltou ainda que “nenhuma outra localidade no Brasil” está tão avançada quanto o Ceará na produção de H₂V, e que “a infraestrutura e a prontidão do Estado, especialmente a do Porto do Pecém, permanecem como diferenciais incomparáveis”.
Governo do Ceará vai criar ‘corredor de utilidades’
Ainda segundo nota do Governo do Estado, será criado um corredor de utilidades por onde vão circular os dutos de amônia, gás natural, hidrogênio, água e a rede de energia elétrica.
“Esses projetos terão financiamento de US$ 90 milhões do Banco Mundial, US$ 35 milhões do CIF (Climate Investment Funds) e contrapartida de US$ 10 milhões da Cipp S/A. O processo de licitação está em andamento e as obras iniciam ainda este ano”, projeta a Secretaria da Casa Civil.
A Pasta diz ainda que o processo da nova estação vai “garantir energia suficiente para os eletrolisadores”, estruturas onde são produzidos o H₂V. O desafio, no entanto, fica pelas linhas de transmissão, que atualmente são suficientes para escoar a produção, mesmo com anúncios recentes de novos leilões.
“Já foi leiloado para o Ceará 1.991 km de linhas de transmissão. Como essa quantidade não é suficiente para a demanda do Pecém, o Governo do Ceará já apresentou propostas à União para suprir essa necessidade e viabilizar o hub de H₂V. Conforme a proposta, seriam três grandes linhas: uma vindo da Serra da Ibiapaba, uma no Sertão Central e uma em Icapuí, que permitiriam atender a demanda para o Pecém”, elenca.
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Na nova expansão do Porto do Pecém serão investidos cerca de R$ 1,3 bilhão bancos pela própria CIPP S/A
Carlos Marlon
Para daqui a sete anos, a tendência é de uma parceria ainda mais intrínseca entre o Cipp e o Porto de Roterdã. “A produção estimada de hidrogênio verde do Complexo do Pecém chegará a 1 milhão de toneladas/ano em 2032, um potencial para atender a 25% da demanda de importação de Roterdã”, finaliza a pasta.
A Secretaria de Infraestrutura do Estado do Ceará (Seinfra-CE) relata que “a intenção é reduzir os prazos de entrega desses reforços para até o ano de 2029, mas com garantia de atendimento dos primeiros projetos já no ano de 2027”, em consonância com a solicitação das empresas.
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